quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

ética animal

trabalho realizado no âmbito do mestrado em filosofia-filosofia moderna e contemporânea, na disciplina "questões de ética pura e aplicada".































ética dos animais


A 2.ª sessão do III Filo-Café tem, desta vez, como orador convidado, o Dr. António Pereira da Costa, o qual irá debruçar-se sobre a questão "Existe uma Ética para os Animais?" Licenciado em Direito pela Universidade de Coimbra, a sessão irá decorrer no próximo dia 24 de Fevereiro, na Quinta-Feira, pelas 21h30, na Biblioteca da Escola Secundária D. Sancho I, em Vila Nova de Famalicão. O Dr. Pereira da Costa já foi Presidente da Assembleia-Geral da Liga Portuguesa dos Direitos do Animal e foi, estando agora aposentado, Director dos Assuntos Jurídicos e Contencioso da Câmara Municipal de V. N. de Famalicão. Para além de três obras de direito administrativo, e de vários artigos publicados em revistas da especialidade, publicou em 1998, na Coimbra Editora, o livro "Dos Animais: o direito e os direitos", cuja capa aqui se publica. Esta 2.ª sessão do III Filo-Café da APEFP, com o apoio da Escola Secundária D. Sancho I, terá como moderador Amadeu Gonçalves, Presidente da Assembleia-Geral da APEFP.




PERSPECTIVA JURÍDICA DOS ANIMAIS

I
Introdução
II
O Estatuto dos Animais
III
A Propriedade dos Animais
IV
A Posse e a Utilização dos Animais
V
Os Danos Causados por Animais
VI
Os Animais no Código da Estrada
VII
O Ilícito Penal e de Mera Ordenação Social
VIII
Os Animais como Componente do Meio Ambiente
IX
Sanidade Animal
LEGISLAÇÃO
I
Código Civil. Compra e Venda
II
Legislação de Protecção dos Animais
III
Animais Domésticos e Domesticados
IV
Protecção das Espécies da Fauna
V
Sanidade Animal

scarlatti e bartolomeu

“Senhor Scarlatti, disse o padre quando o improviso terminou e todos os ecos ficaram corrigidos, senhor Scarlatti, não me gabo de saber dessa arte, mas estou que até um índio da minha terra, que dela sabe ainda menos do que eu, haveria de sentir-se arrebatado por essas harmonias celestes, Porventura não, respondeu o músico, porque bem sabido é que há-de o ouvido ser educado se quer estimar os sons musicais, como os olhos têm de aprender a orientar-se no valor das letras e sua conjunção de leitura, e os próprios ouvidos no entendimento da fala, São palavras ponderadas, essas, que emendam as levianas minhas, é um defeito comum nos homens, mais facilmente dizerem o que julgam querer ser ouvido por outrem do que cingirem-se à verdade, Porém, para que os homens possam cingir-se à verdade, terão primeiramente de conhecer os erros, E praticá-los, Não saberei responder à pergunta com um simples sim ou um simples não, mas acredito na necessidade do erro / […] / Tendes razão, disse o padre, mas, desse modo, não está homem livre de julgar abraçar a verdade e achar-se cingido com o erro, Como livre também não está de supor abraçar o erro e encontrar-se cingido com a verdade, respondeu o músico, e logo disse o padre, Lembrai-vos de que quando Pilatos perguntou a Jesus o que era a verdade, nem ele esperou pela resposta, nem o Salvador lha deu, Talvez soubessem ambos que não existe resposta para tal pergunta, Caso em que, sobre esse ponto, estaria Pilatos sendo igual de Jesus, Derradeiramente, sim, Se a música pode ser tão excelente mestra de argumentação, quero já ser músico e não pregador, Fico obrigado pelo cumprimento, mas quisera eu, senhor padre Bartolomeu de Gusmão, que a minha música fosse um dia capaz de expor, contrapor e concluir como fazem sermão e discurso, Ainda que, reparando bem no que se diz e como, senhor Scarlatti, se exponham e contraponham, as mais das vezes, fumo e nevoeiro, e se conclua coisa nenhuma. A isto não respondeu o músico, e o padre rematou, Todo o pregador honesto o sente quando baixa do púlpito, Disse o italiano, encolhendo os ombros, Fica o silêncio depois da música e depois do sermão, que importa que se louve o sermão e aplauda a música, talvez só o silêncio exista verdadeiramente.” (José Saramago, Memorial do Convento, 157-159). Itálicos meus


a visita à passarola



“Na sua frente estava uma ave gigantesca, de asas abertas, cauda em leque, pescoço comprido, a cabeça ainda em tosco, por isso não se sabia se viria a ser falcão ou gaivota., É este o segredo, perguntou, Este é, até hoje de três pessoas, agora de quatro, aqui está Baltasar Sete-Sóis, e Blimunda não se demora, anda na horta. O italiano fez uma pequena vénia na direcção de Baltasar, que respondeu com outra mais profunda, ainda que inábil, sempre era ele o mecânico, e além disso estava sujo, enfarruscado da forja, em todo ele só brilhava o gancho, do muito e constante trabalho. Domenico Scarlatti aproximou-se da máquina, que se equilibrava sobre uns espeques laterais, pousou as mãos numa das asas como se ela fosse um teclado, e, singularmente, toda a ave vibrou apesar do seu grande peso, cavername de madeira, lamelas de ferro, vime entrançado, se houver forças que façam levantar isto, então ao homem nada é impossível, Estas asas são fixas, Assim é, Nenhuma ave pode voar sem bater as asas, A isso Baltasar responderia que basta ter forma de ave para voar, mas eu respondo que o segredo do voo não é nas asas que está, E esse segredo não o posso saber eu, Não posso dar mais que mostrar o que aqui se vê, Já isso basta para que eu agradeça, mas, havendo esta ave de voar, como sairá, se não cabe na porta. / Baltasar e o padre Bartolomeu Lourenço olharam-se perplexos, e depois para fora. Blimunda estava ali, com um cesto de cerejas, e respondia, Há um tempo para construir e um tempo para destruir, umas mãos assentaram as telhas deste telhado, outras o deitarão abaixo, e todas as paredes, se for preciso. Esta é que é Blimunda, disse o padre, Sete-Luas, acrescentou o músico. […] Disse o padre Bartolomeu Lourenço, Não irei revelar o segredo último do voo, mas, tal como escrevi na petição e memória, toda a máquina se moverá por obra de uma virtude colectiva contrária à queda dos graves, se eu largar este caroço de cereja, ele cai para o chão, ora, a dificuldade está em encontrar o que o faça subir. E encontrou. O segredo descobri-o eu, quanto a encontrar, colher e reunir é trabalho de nós três. É uma trindade terrestre, o pai, o filho e o espírito santo, Eu e Baltasar, temos a mesma idade, trinta e cinco anos, não poderíamos ser pai e filho naturais, isto é, segundo a natureza, mais facilmente irmãos, mas, sendo-o, gémeos teríamos de ser, ora ele nasceu em Mafra, eu no Brasil, e as parecenças são nenhumas, Quanto ao espírito, Esse seria Blimunda, talvez seja ela a que mais perto estaria de ser parte numa trindade não terrenal, Trinta e cinco anos é também a minha idade, mas nasci em Nápoles, não poderíamos ser uma trindade de gémeos, e Blimunda que idade tem, Tenho vinte e oito, e sem irmão ou irmã, e isto dizendo levantou Blimunda os olhos, quase brancos na meia penumbra da abegoaria, e Domenico Scarletti ouviu ressoar dentro de si a corda mais grave duma harpa. Ostensivamente, Baltasar levantou o cesto quase vazio com o seu gancho, e disse, Acabou a merenda, vamos trabalhar. / O padre Bartolomeu Lourenço foi encostar uma escada à passarola, Senhor Scarlatti, se quiser ver por dentro a minha máquina de voar. Subiram ambos, o padre levava o desenho, e lá dentro, andando sobre o que parecia um convés de barco, explicou as posições e funções das diversas partes, os arames com o âmbar, as esferas, as lamelas de ferro, repetindo que tudo operaria por atracção mútua, mas não falou do sol nem do que haveriam de conter as esferas, porém o músico perguntou, Que coisa atrairá o âmbar, Talvez Deus, em quem toda a força mora, respondeu o padre, O âmbar atrairá que coisa, O que estiver dentro das esferas, Esse é o segredo, Sim, esse é o segredo, É mineral, vegetal ou animal, Não é mineral, nem vegetal, ou animal, Nem tudo, há coisas que o não são, a música, por exemplo, Padre Bartolomeu de Gusmão, decerto não quer dizer-me que estas esferas vão conter música, Não, mas quem sabe se com ela não subirá também a máquina, tenho de pensar nisso, afinal pouco falta para que me erga eu ao ar quando o ouço tocar no cravo, É um gracejo, Menos do que parece, senhor Scarlatti.” (José Saramago, Memorial do Convento, 164-166) itálicos meus

o voo da passarola



“Agora, sim, podem partir. O padre Bartolomeu Lourenço olha o espaço celeste descoberto, sem nuvens, o sol que parece uma custódia de ouro, depois Baltasar que segura a corda com que se fecharão as velas, depois Blimunda, prouvera que adivinhassem os seus olhos o futuro, Encomendemo-nos ao Deus que houver, disse-o num murmúrio, e outra vez num sussurro estrangulado, Puxa, Baltasar, não o fez logo Baltasar, tremeu-lhe a mão, que isto será como dizer Fiat, diz-se e aparece feito, o quê, puxa-se e mudamos de lugar; para onde, Blimunda aproximou-se, pôs as duas mãos sobre a mão de Baltasar, e, num só movimento, como se só desta maneira devesse ser, ambos puxaram a corda. A vela correu toda para um lado, o sol bateu em cheio mas bolas de âmbar, e agora, que vai ser de nós. A máquina estremeceu, oscilou como se procurasse um equilíbrio subitamente perdido, ouviu-se um rangido geral, eram as lamelas de fero, os vimes entrançados, e de repente, como se a aspirasse um vórtice luminoso, girou duas vezes sobre si própria enquanto subia, mal ultrapassara ainda a altura das paredes, até que, firme, novamente equilibrada, erguendo a sua cabeça de gaivota, lançou-se em flecha, céu acima. Sacudidos pelos bruscos volteios, Baltasar e Blimunda tinham caído no chão de tábuas da máquina, mas o padre Bartolomeu Lourenço agarrara-se a um dos prumos que sustentavam as velas, e assim pôde ver afastar-se a terra a uma velocidade incrível, já mal se distinguia a quinta, logo perdida entre colinas, e aquilo além, que é, Lisboa, claro está, e o rio, oh, o mar, aquele mar por onde eu, Bartolomeu Lourenço de Gusmão, vim por duas vezes do Brasil, o mar por onde viajei à Holanda, a que mais continentes da terra e do ar me levarás tu, máquina, o vento ruge-me aos ouvidos, nunca ave alguma subiu tão alto, se me visse el-rei, se me visse aquele Tomás Pinto Brandão que se riu de mim em verso, se o Santo Ofício me visse, saberiam todos que sou filho predilecto de Deus, eu sim, eu que estou subindo ao céu por obra do meu génio, por obra também dos olhos de Blimunda, se haverá no céu olhos como eles, por obra da mão direita de Baltasar, aqui te levo, Deus, um que também não tem a mão esquerda, Blimunda, Baltasar, venham ver, levantem-se daí, não tenham medo. / Não tinham medo, estavam apenas assustados com a sua própria coragem. O padre ria, dava gritos, deixara já a segurança do prumo e percorria o convés da máquina de um lado a outro para poder olhar a terra em todos os seus pontos cardeais, tão grande agora que estavam longe dela, enfim levantaram-se Baltasar e Blimunda, agarrando-se nervosamente aos prumos, depois à armurada, deslumbrados de luz e de vento, logo sem nenhum susto, Ah, e Baltasar gritou, Conseguimos, abraçou-se a Blimunda e desatou a chorar, parecia uma criança perdida, um soldado que andou na guerra, que nos Pegões matou um homem com o seu espigão, e agora soluça de felicidade abraçado a Blimunda, que lhe beija a cara suja, então, então. O padre veio para eles e abraçou-se também, subitamente perturbado por uma analogia, assim dissera o italiano, Deus ele próprio, Baltasar seu filho, Blimunda o Espírito Santo, e estavam os três no céu, Só há um Deus, gritou, mas o vento levou-lhe as palavras da boca. Então Blimunda disse, Se não abrirmos a vela, continuaremos a subir, aonde iremos parar, talvez ao sol. / Nunca perguntamos se haverá juízo na loucura, mas vamos dizendo que de louco todos temos um pouco. São maneiras de nos assegurarmos do lado de cá, imagine-se, darem os doidos como pretexto para exigir igualdades no mundo dos sensatos, só loucos um pouco, o mínimo juízo que conservem, por exemplo, salvaguardarem a própria vida, como está fazendo o padre Bartolomeu Lourenço. Se abrirmos de repente a vela, cairemos na terra como uma pedra, e é ele quem vai manobrar a corda, dar-lhe a folga precisa para que se estenda a vela sem esforço, tudo depende agora do jeito, e a vela abre-se devagar, faz descer a sombra sobre as bolas de âmbar e a máquina diminui de velocidade, quem diria que tão facilmente se poderia ser piloto nos ares, já podemos ir à procura das novas Índias. A máquina deixou de subir, está parada no céu, de asas abertas, o bico virado para o Norte, se se está movendo, não parece. O padre abre mais a vela, três quartas partes das bolas de âmbar estão já à sombra, e a máquina desce suavemente, é como estar dentro de um bote num lago tranquilo, um jeito no leme, um harpeio de remo, as coisas que um homem é capaz de inventar. Devagar, a terra aproxima-se, Lisboa distingue-se melhor, o rectângulo torto do Terreiro do Paço, o labirinto das ruas e travessas, o friso das varandas onde o padre morava, e onde agora estão entrando os familiares do Santo Ofício para o prenderem, tarde piaram, gente tão escrupulosa dos interesses do céu e não se lembram de olhar para cima, é certo que, a tal altura, a máquina é um pontinho no azul, como levantariam os olhos se estão aterrados diante de uma Bíblia rasgada na altura do Pentateuco, de um Alcorão feito em pedaços indecifráveis, e já saem, vão na direcção do Rossio, do palácio dos Estaus, a informar que fugiu o padre a quem iam buscar para o cárcere, e não adivinham que o protege a grande abóbada celeste aonde eles nunca irão, é bem verdade que Deus escolhe os seus favoritos, doidos, defeituosos, excessivos, mas não familiares do Santo Ofício. Desce a passarola um pouco mais, com algum esforço se observa a quinta do duque de Aveiro, é certo que estes aviadores são principiantes, falta-lhes a experiência que permitiria identificar de relance os acidentes principais, os cursos de água, as lagoas, as povoações como estrelas derramadas no chão, as escuras florestas, mas lá estão as quatro paredes da abegoaria, o aeroporto donde levantaram voo, lembra-se o padre Bartolomeu Lourenço de que tem um óculo na arca, em dois tempos o vai buscar e aponta, oh que maravilha é viver e inventar, vê-se claramente, a enxerga ao canto, a forja, só o cravo desapareceu, que foi que aconteceu ao cravo, nós o sabemos e vamos dizer, que indo Domenico Scarlatti à quinta, viu, já chegando perto, levantar-se de repente a máquina, num grande sopro de asas, que faria se elas batessem, e tendo entrado deu com os destroços da largada, as telhas partidas, espalhadas pelo chão, as ripas e os barrotes cortados ou arrancados, não há nada mais triste que uma ausência, corre o avião pista fora, levanta-se ao ar, só fica uma pungente melancolia, esta que fez sentar-se Domenico Scarlatti ao cravo e tocar um pouco, quase nada, apenas passando um rosto quando já as palavras foram ditas ou são de menos, e depois, porque muito bem sabe ser perigoso deixar ali o cravo, arrasta-o para fora, sobre o hão irregular, aos solavancos, gemem desencontradas as cordas, agora sim se desacertarão os saltarelos e vai ser para nunca mais, levou Scarlatti o cravo até ao bocal do poço, felizmente que é baixo, e levantando-o em peso, muito lhe custa, o precipita a fundo, bate a caixa duas vezes na parede interior, todas as cordas gritam, e enfim cai na água, ninguém sabe o destino para que está guardado, cravo que tão bem tocava, agora descendo, gorgolojando como um afogado, até assentar no lodo. Do alto já não se vê o músico, vai por aí, por essas azinhagas, porventura desviando o caminho, porventura olhando para cima, torna a ver a passarola, acena com o chapéu, uma vez só, melhor é disfarçar, fingir que não se sabe nada, por isso não o viram da nave, quem sabe se tornarão a encontrar-se. " Itálicos meus

o voo da passarola


O vento está do Sul, uma brisa que mal faz agitar os cabelos de Blimunda, com esta aragem não poderão ir a lado algum, seria o mesmo que querer atravessar o oceano a nado, por isso Baltasar pergunta, Dou ao fole, todas as moedas têm duas faces, primeiro proclamou o padre, Só há um Deus, agora quer Baltasar saber, Dou ao fole, primeiro o sublime, depois o trivial, quando Deus não sopra, tem o homem de fazer força. Mas o padre Bartolomeu Lourenço parece ter sido tocado por um ramo de estupor, não fala, não se mexe, apenas olha o grande círculo da terra, uma parte de rio e mar, uma parte de monte e planície, se aquilo não é espuma, além, será a vela branca duma nau, se não for farrapo de névoa é fumo de chaminé, e contudo dir-se-ia que o mundo acabou, os homens nele, o silêncio aflige, e o vento caiu, nem um cabelo de Blimunda se move, Dá ao fole, Baltasar, disse o padre. / É como a pedaleira de um órgão, tem umas sapatas para encaixe dos pés, e, à altura do peito, fixada ao cavername da máquina, há uma barra para apoio dos braços, não é nenhuma invenção complementar do padre Bartolomeu Lourenço, foi ir à sé patriarcal e imitar do órgão que lá está, a diferença é que neste não há música para ouvir, apenas o resfolgo do sopro atirado para as asas e para a cauda da passarola, que finalmente começa a mover-se, devagar, tão devagar que só de a ver assim cansa, e ainda não chegou a coar um tiro de besta já é Baltasar que está cansado, também desta maneira não vamos a parte alguma. De cara fechada, o padre avalia os esforços de Sete-Sóis, compreende que a sua grande invenção tem um ponto fraco, no espaço celeste não se pode fazer como na água, meter os remos ao ar quando falta o vento, Pára, não dês mais aos foles, e Baltasar, esgotado, senta-se no fundo da máquina. / O susto, o júbilo, cada qual de sua vez, já passaram, agora vem o desânimo, subir e descer sabem eles, estão como homem que fosse capaz de levantar-se e deitar-se, mas não de andar. O sol vai baixando para o lado da barra, já se estendem as sombras na terra. O padre Bartolomeu Lourenço sente uma inquietação cuja causa não causa discernir, mas dela o distrai a súbita observação de que se orientam para o Norte as nuvens de fumo de uma queimada distante, quer isto dizer que, próximo da terra, o vento não deixou de soprar. Manobra a vela, estende-a um pouco mais, de modo a cobrir de sombra outra fileira de bolas de âmbar, e a máquina desce bruscamente, porém não o bastante para apanhar o vento. Mais uma fileira deixa de receber a luz do sol. A queda é tão violenta que o estômago parece querer saltar-lhes pela boca, e agora sim, o vento colhe a máquina com uma mão poderosa e invisível e lança-a para a frente, com tal velocidade que de repente fica Lisboa para trás, já no horizonte, diluída numa bruma seca, é como se finalmente tivessem abandonado o porto e as suas amarras para ir descobrir os caminhos ocultos, por isso se lhes aperta o coração tanto, quem sabe que perigos os esperam, que adamastores, que fogos de santelmo, acaso se levantam do mar, que ao longe se vê, trombas de água que vão sugar os ares e o tornam a dar salgado. Então Blimunda perguntou, Aonde vamos, e o padre respondeu, Lá aonde não possa chegar o braço do Santo Ofício, se existe esse lugar. / Este povo, que tanto espera do céu, olha pouco para o alto onde se diz que o céu é. Anda gente a trabalhar nos campos, as pessoas, nas aldeias, entram e saem das casas, vão ao quintal, à fonte, agacham-se atrás dum pinheiro, sómuma mulher que está deitada num restolho com um homem em cima de si, cuida ver qualquer coisa a passar no céu, mas julga serem visões próprias de quem está a gostar tanto. Só as aves, curiosas, voam, e perguntam, girando em redor da máquina ansiosamente, que é, que é, talvez seja este o messias dos pássaros, em comparação, a águia não passa de um S. João Baptista qualquer, Após mim vem aquele que é mais forte do que eu, a história da aviação não acaba aqui. Durante algum tempo voaram acompanhados por um milhafre que assustara e fizera fugir todos os pássaros, iam só os dois, o milhafre adejando e pairando, percebe-se que voe, a passarola sem mover as asas, não soubéssemos nós que isto é feito de sol, âmbar, nuvens fechadas, ímanes e lamelas de ferro, e não acreditaríamos no que os nossos olhos vêem, além de que não teríamos a desculpa da mulher que estava deitada no restolho e já não está, acabou-se-lhe o gosto, daqui nem o sítio se vê. / O vento mudou para Sudeste, sopra com muita força, a terra passa em baixo como a superfície móvel de um rio que transportasse na corrente campos, bosques, paredes brancas, velas de moinhos, e também fios de água, que forças seriam capazes de fazer a separação dessas águas, o grande rio que passa e tudo leva consigo, os pequenos regatos que nele procuram caminho, água dentro da água, e não o sabem. / Estão os três voadores à proa da máquina, vão na direcção do poente, e o padre Bartolomeu Lourenço sente que a inquietação regressou e cresce, é pânico já, enfim vai ter voz, e essa voz é um gemido, quando o sol se puser, descerá irremediavelmente a máquina, talvez caia, talvez se despedace e todos morrerão, É Mafra, além, grita Baltasar, parece o gajeiro a bradar do cesto da gávea, Terra, nunca comparação alguma foi tão exacta, porque esta é a terra de Baltasar, reconhece-a, mesmo nunca a tendo visto do ar, quem sabe se por termos no coração uma orografia particular que, para cada um de nós, acertará com o particular lugar onde nascemos, o côncavo meu no teu convexo, no meu convexo o teu côncavo, é o mesmo que homem e mulher, mulher e homem, terra somos na terra, por isso é que Baltasar grita, É a minha terra, reconhece-a como um corpo. Passam velozmente sobre as obras do convento, mas desta vez há quem os veja, gente que foge espavorida, gente que se ajoelha ao acaso e levanta as mãos implorativas de misericórdia, gente que atira pedras, o alvoroço toma conta de milhares de homens, quem não chegou a ver, duvida, quem viu, jura e pede o testemunho do vizinho, mas provas já ninguém as pode apresentar porque a máquina afastou-se na direcção do sol, tornou-se invisível contra o disco refulgente, talvez não tivesse sido mais que uma alucinação, já os cépticos triunfam sobre a perplexidade dos que acreditaram. / Em poucos minutos, a máquina atinge a costa do mar, parece que a está puxando o sol para a levar ao outro lado do mundo. O padre Bartolomeu Lourenço compreende que vão cair na água, puxa violentamente a corda, a vela corre toda para um lado, fecha-se de golpe, e a subida é tão rápida que a terra se alarga de novo e o sol surge muito acima do horizonte. É demasiado tarde, porém. Para o lado do oriente já se avistam sombras, a noite está-se aproximando, não é possível fugir-lhe. Pouco a pouco, a máquina começa a derivar para nordeste, em linha recta, obliquando na direcção da terra, sujeita à dupla atracção da luz, que rapidamente enfraquece, mas ainda tem forças para a sustentar no espaço, e da escuridão nocturna, que já oculta os vales distantes. Agora não se sente o vento natural, vencido pela violenta corrente de ar provocada pela descida, pelo silvo agudo que a deslocação faz vibrar na cobertura de vime. O sol está pousado no horizonte do mar, como uma laranja na palma da mão, é um disco metálico retirado da forja para arrefecer, já o seu brilho não fere os olhos, foi branco, cereja, rubro, vermelho, ainda fulge, mas sobriamente, está a despedir-se, adeus, até amanhã, se houver amanhã para os três nautas aéreos que tombam como uma ave ferida de morte, mal equilibrada nas asas curtas, com o seu diadema de âmbar, em círculos concêntricos, queda que parece infinita e vai acabar. Na frente deles ergue-se um vulto escuro, será o adamastor desta viagem, montes que se erguem redondos da terra, ainda riscados de luz vermelha na cumeada. O padre Bartolomeu Lourenço olha indiferente, está fora do mundo, para além da própria resignação, espera o fim que não vai tardar. Mas de súbito Blimunda solta-se de Baltasar, a quem convulsa se agarrara quando a máquina precipitou a descida, e rodeia com os braços uma das esferas que contêm as nuvens fechadas, as vontades, duas mil são mas não chegam, cobre-as com o corpo, como se as quisesse meter dentro de si ou juntar-se a elas. A máquina dá um salto brusco, levanta a cabeça, cavalo a que puxaram o bridão, suspende-se por um segundo, hesita, depois recomeça a cair, mas menos depressa, e Blimunda grita, Baltasar, Baltasar, não precisou chamar três vezes, já ele se abraçara com a outra esfera, fazia o corpo com ela, Sete-Luas e Sete-Sóis sustentando com as suas nuvens fechadas a máquina que baixava, agora devagar, tão devagar que mal rangeram os vimes quando tocou o chão, só bandeou para um lado, não havia ali espeques para a receber, é que não se pode ter tudo. Frouxos de membros, extenuados, os três viajantes escorregaram para fora, tentaram ainda segurar-se à amurada, não o conseguiram, e, rolando, acharam-se estendidos no chão, sem sequer feridos de raspão, é bem verdade que não se acabaram os milagres, e este foi dos bons, nem foi preciso invocar S. Cristóvão, ele lá estava, vigiando o trânsito, viu aquele avião desgovernado, deitou-lhe a grande mão e evitou a catástrofe, para seu primeiro milagre aéreo não esteve nada mal.” (José Saramago, Memorial do Convento, 191-199). Itálicos meus.