quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

scarlatti e bartolomeu

“Senhor Scarlatti, disse o padre quando o improviso terminou e todos os ecos ficaram corrigidos, senhor Scarlatti, não me gabo de saber dessa arte, mas estou que até um índio da minha terra, que dela sabe ainda menos do que eu, haveria de sentir-se arrebatado por essas harmonias celestes, Porventura não, respondeu o músico, porque bem sabido é que há-de o ouvido ser educado se quer estimar os sons musicais, como os olhos têm de aprender a orientar-se no valor das letras e sua conjunção de leitura, e os próprios ouvidos no entendimento da fala, São palavras ponderadas, essas, que emendam as levianas minhas, é um defeito comum nos homens, mais facilmente dizerem o que julgam querer ser ouvido por outrem do que cingirem-se à verdade, Porém, para que os homens possam cingir-se à verdade, terão primeiramente de conhecer os erros, E praticá-los, Não saberei responder à pergunta com um simples sim ou um simples não, mas acredito na necessidade do erro / […] / Tendes razão, disse o padre, mas, desse modo, não está homem livre de julgar abraçar a verdade e achar-se cingido com o erro, Como livre também não está de supor abraçar o erro e encontrar-se cingido com a verdade, respondeu o músico, e logo disse o padre, Lembrai-vos de que quando Pilatos perguntou a Jesus o que era a verdade, nem ele esperou pela resposta, nem o Salvador lha deu, Talvez soubessem ambos que não existe resposta para tal pergunta, Caso em que, sobre esse ponto, estaria Pilatos sendo igual de Jesus, Derradeiramente, sim, Se a música pode ser tão excelente mestra de argumentação, quero já ser músico e não pregador, Fico obrigado pelo cumprimento, mas quisera eu, senhor padre Bartolomeu de Gusmão, que a minha música fosse um dia capaz de expor, contrapor e concluir como fazem sermão e discurso, Ainda que, reparando bem no que se diz e como, senhor Scarlatti, se exponham e contraponham, as mais das vezes, fumo e nevoeiro, e se conclua coisa nenhuma. A isto não respondeu o músico, e o padre rematou, Todo o pregador honesto o sente quando baixa do púlpito, Disse o italiano, encolhendo os ombros, Fica o silêncio depois da música e depois do sermão, que importa que se louve o sermão e aplauda a música, talvez só o silêncio exista verdadeiramente.” (José Saramago, Memorial do Convento, 157-159). Itálicos meus


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