sábado, 6 de novembro de 2010

seide, ponto do universo

Para o Zé Armando, esta fabulosa descrição de Camilo sobre o comércio religioso em Requião, entre o real e o ficcional, de outros tempos.




CASTELO BRANCO, Camilo
A Brasileira de Prazins: cenas do Minho. Nota editorial Aníbal Pinto de Castro; Pref. João Bigotte Chorão. Porto: Ediçoes Caixotim, 2001. («Caixotim Clássico»; Dir. Aníbal Pinto de Castro).


REQUIÃO


"Enquanto na igreja, depois da missão, se depunha a hóstia nas línguas saburrentas e gretadas das beatas -que engoliam aquela farinha triga como quem devora sevamente um Deus -, cá fora armavam-se no adro dois tabuleiros, assentes em tripeças de engonços, com seus pavilhões de guarda-sóis de paninho azul. Algumas mulheres de aspectos repelentes, sujas da pojeira das jornadas, com os canelos calosos e encodeados, expunham nos tabuleiros as suas mercadorias, e ao mesmo tempo injuriavam-se reciprocamente por velhas rijas invejosas à conta de subornarem freguesas com caramunhas e palavreados. No silêncio do templo, ouvia-se cá de fora:
- Arre, bêbeda!
- Cala-te aí, calhamaço!
A exposição bibliográfica, feita nos tabuleiros, além das obras e encadernadas dos missionários, constava da Regra de S. Bento, da Missão Aumentada, das Piedosas Meditações, das Horas do Cristão, do Mês de Maria, do Mês de Jesus e do Livro de Santa Bárbara. Havia também Novenas, Vias-Sacras com estampas dum horror sacrílego, uns Cristos que pareciam manipansos do Bié. Seguia-se a camada dos Escapulários: uns eram de N. S. do Carmo, de N. S. das Dores, da Conceição; outros do Preciocíssimo Sangue de Jesus, do Coração do mesmo, da Santíssima Trindade e de S. Francisco. Tinham grande saída os Cordões do mesmo santo, e as Correias de S. Agostinho, com um botão de osso, a apertar na cintura: arnês impenetrável ao Diabo, por causa do botão, que, posto na correia, tem virtudes para osso muito admirável, quase como as da carne, mas no sentido inverso - ela atraindo o cão tinhoso, e ele repulsando-o. De Santo Agostinho e do Anjo da Guarda também havia Rezas enfiadas em metal, ou em cordão simplesmente, mais baratinhas. Na espécie medalheiro, grande profusão: as medalhas mais procuradas eram as do Coração de Maria, do Coração de Jesus, do Anjo da Guarda e de Santa Teresa, a 10 réis.
As coroas, penduradas em barbantes ou estendidas em medas, eram diversas no tamanho e na nomenclatura: as seráficas com sete mistérios, e cada mistério com dez Ave-Marias; as de S. da Conceição com doze Aves e três mistérios - uma certa conta que os missionários lá graduavam com a gafaria espiritual das confessadas. Havia algumas que se aguentavam com os Rosários de quinze mistérios, e a Coroa dos nove coros dos anjos, e a do Preciosíssimo Sangue e Coração de Jesus. Mas o grande consumo era de contas de azeviche, refractárias aos maus olhados; de modo e maneira que, se o azeviche é legítimo, senhores, logo que um inimigo nos encara, a conta racha de meio a meio." (190-191)




seide, ponto do universo

Este blog, como não poderia deixar de ser, tem tido, desde o seu início, várias referências a Camilo e a Seide. O que coloquei ontem faz parte de um projecto editorial que tenho em vista há já alguns anos à volta de Camilo, aliás, dois, um dicionário temático e um breviário, o qual já teve várias designações, do género "O Minho de Camilo: breviário de Vila Nova", "O Minho de Camilo: entre a ficção e a realidade", "Famalicão de Camilo", "Itinerário Camiliano: prolegómanos a Vila Nova", "Itinerário Camiliano do Minho, Vila Nova de Famalicão e Outras Coisas Mais" e, o primeiro das primeiras evidências titulares, "Breviário Camiliano". Aos poucos irei aqui colocar muitas referências e textos de Camilo não só sobre Vila Nova de Famalicão, como igualmente do seu Minho, do qual, e apesar de tudo, soube prescrutar como mais nenhum outro escritor, aquela interioridade do humano. É por isso que ainda hoje se lê Camilo. E hoje, em termos ilustrativos, reproduzo este óleo de António Lino, o qual foi publicado no "Boletim da Casa de Camilo", no n.º 1 da 1.ª série do primeiro trimestre de 1964, com o título de "Casa Assombrada", título místico este.








MINHO


"Em testemunho da regalada leitura que V. Ex.ª me deu com o seu "Minho", lhe ofereço uma das novelas de cá. O Minho tem o romanesco da árvore e o romance da família. A paisagem sugeriu-lhe, meu caro poeta, as prosas floridas do ridente livro. O seu estilo tem a macia luz do luar das noites estivas, e o cadencioso murmúrio das ribeiras onde o céu estrelado se espelha. / O Minho lucra muito, visto assim de passagem, na imperial de uma diligência, lá muito no galarim do tejadilho, onde as moscas, onde as moscas não se álem a ferretoar-nos a testa e a sevandijar-nos os beiços convulsos de lirismo. / Viu V. Ex.ª perfeitamente o Minho por fora: as verduras ondulando nas pradarias, os jorros de água espumando na espalda dos outeiros, os fraguedos às cavaleiras dos milharais, a amendoeira a florejar ao lado do pinheiral bravio, as ruínas do paço senhorial com os seus tapetes de ortigas e guadalmecins de musgo ao pé da chaminé escarlate e verde do negreiro a golfar rolos turbinosos de fumo indicativo de panelas grandes e galinhas gordas, lardeadas de chouriços. Simultaneamente, ouviu V. Ex.ª o som da buzina pastoril ressonando a sua longa toada nas gargantas da serra; viu os espantadiços rebanhos alcandorados nos espinhaços dos montes, e os rafeiros à ourela das estradas com os focinhos nas patas dianteiras, orelhas fitas e olhar arrogante. Reparou decerto na pachorra estóica do boi cevado, que parece estar contemplando em si mesmo a metempsicose em futuro cidadão de Londres mediante o processo do bife. Tudo isto, que é a forma objectiva do Minho romântico viu V. Ex.ª, afora o mais que aformoseia o seu livro, os encarecimentos, as lisonjas, as feitiçarias da arte com que V. Ex.ª disputa primores à natureza. / Mas o que D. António da Costa não teve tempo de ver e apalpar foi o miolo, a medula, as entranhas românticas do Minho; quero dizer - os costumes, o viver que por aqui palpita no povoado destes arvoredos onde assobia o melro e a filomela trila. / Ah! meu amigo! Romances, tecidos de casos cândidos e inocentes, apenas os fazem por aqui os pássaros em Abril quando urdem e afofam os seus ninhos 8...] / E é neste meio que eu me abalanço a esgaratujar novelas. Há treze anos que apeguei por esse Minho, em cata do bálsamo dos pinheirais e das fragrâncias das almas inocentes. Diziam-me que a rusticidade era o derradeiro baluarte da pureza, e que os lavradores do Minho, nivelados com os saloios da Estremadura, eram os cândidos pastores da Arcádia comparados aos malandrins de Gomorra." (Camilo, O Comendador)