quinta-feira, 22 de julho de 2010

leituras enciclopédicas e brincalhonas

Bem me parecia, finalmente! exclama Simões, quando entra pela casa dentro, Finalmente! e Camilo, Mas finalmente o quê? O que é que te bem parecia? Bolas, acordaste-me da sesta, só se for uma grande novidade, E é, diz Simões, Mas porque estás a escrever assim, Assim como, Assim, Ah, em homenagem a Saramago, já não é a primeira vez quando falo deste prémio que assim escrevo, Pois não, Esse já cá está, já cá tivemos uma boa conversinha, Ainda não me tinhas contado, Estava há tua espera, E acordei-te, Sim, Acordaste-me e não, estava a passar pelas brasas, não te encontrava assim há muito, afinal de contas, a que se deve tanto entusiasmo, Ao mundo, à vida, a esta nova Enciclopédia! Vieste cá para me dizer isso? O que é que ela tem, questiona Camilo, Ganhou o teu prémio de conto, Ah, No ano passado lá estive, a espreitar, todos os anos lá estou a espreitar e não te vejo, agora só de vez em quando é que dás notícias, Mas estive lá no ano passado, tu estavas e não estavas, apenas espreitavas, É a vida, parece que andamos a fugir dela, anda-se a fugir da vida, Acontece! E já estiveste com Saramago, pergunta Simões a Camilo, Já, agradeci-lhe as benesses de 1999, lá me elegeu como mestre, apesar de não fazer parte da mala dele dos preferidos, Deixa lá, sempre te lembrou, Escrever como falar, falar como escrever, Não, é só escrever como falar, essa do falar e escrever é nova, Sim, mas já me soou alguma coisa dessa Enciclopédia, só se leste aqui há uns tempos no blog do meu discípulo, mas ele nada disse de especial, Diz agora através de nós, fala e escreve, Nada é novo, como neste momento, fala em silêncio nestas linhas que escreve. Mas queres que te fale da nova Enciclopédia? Ou não queres antes informações das tuas Memórias Autobiográficas do Viale, e daquele livro dos desejos, Ah, os meus desejos... Será que os terei, Então não tiveste desejo de falar com José, Com qual, o bíblico? Não, homem, o Nobel, que continua a ser tão mal tratado pelos poderes públicos, Pois, eu também fui, nos meus tempos, era mais com os impostos, não me largavam, nem me dava para reconstruir a minha biblioteca perdida, e então esses desejos a meu respeito, Não é a teu respeito, não confundas, é sobre as tuas personalidades, Quais, As reais e as ficcionais, Então também é a meu respeito, Lá estás tu, Não estou nada, estou noutro mundo que não neste, estamos todos, os vivos e os mortos, por isso lá fui desbravando o mistério do ser humano, tão complexo, Não filosofes, diz Simões, Mas diz-me, porque escreves agora, na hora do café iniciaste estas linhas na esplanada na folha do título da Enciclopédia, no bloco notas do Bernardino, da concorrência, ainda escreveu umas coisitas engraçadas a meu respeito, pouco, mas compreendeu-me, Mera coincidência, não tinha papel, foi o que apareceu à mão, E lá continuas todo prático, e já que aqui estás fala-me lá desse Enciclopédia, Falo.


É já na parte final que Afonso Cruz, assim é que se chama o autor desta nova Enciclopédia, revela a mistificação dos verbetes enciclopedistas, entre o imaginário e aquilo que poderá ser verdadeiro, o ficcional e o real. Mas isso adivinha-se logo desde o início, e o homem até trabalha muito bem a ironia, é divertida, uma ironia humorística, e constrói uma Enciclopédia imaginativa. Até a sua própria Enciclopédia é uma mistificação, Mas o que é que ele diz? Muita coisa, muita coisa, Deixa lá as teorias, o que é que ele diz, Deixas citar, Deixo, lê lá, Aí vai:
  • i.
E de outros burlões, embusteiros e mistificadores, como Borges é exemplo. Está no pólo oposto à enciclopédia de Diderot e d`Alembert, na altura da sua edição. Hoje, podemos dizer que a dos iluminados é também uma grande burla - e que as suas verdades, ironicamente, são tão ficção como as desta Enciclopédia. E se não são tão fantasiosas, para lá caminham, como fazem todas as certezas.
  • ii.
Nada neste livro pode ser considerado um facto objectivo e tudo, ou quase tudo, podemos assegurar, é pura invenção. Sob o signo de Toth, Hermes, Mercúrio, Pavic, Worosi, Légba, e outros deuses reconhecidamente trapaceiros. Creio que as referências bibliográficas são falsas, bem como as citações. Diz-se que existe uma entrada que é totalmente verdadeira. Também isto pode ser mentira. / O que sabemos é que não existe nenhuma realidade factual, que as coisas são muito mais aquilo que sentimos do que aquilo que realmente aconteceu. O conteúdo da mentira ou da história, o seu caroço, é uma rquétipo, e contém tanta verdade como qualquer símbolo pode conter.
  • iii.
Outra evidência, ao ler a Enciclopédia, é que o homem não é uma unidade (constatação que faz parte de algumas entradas), mas uma multiplicidade, um conjunto de personagens e personalidades, um conjunto de ideias tantas vezes contraditórias. Achamos que pensamos de certa maneira, mas temos, todos nós, opiniões contrárias àquelas que julgamos serem as nossas. Somos, como disse Agostinho, um mistério para nós mesmos. Somos todos fracturados, como pessoa, só que mais exagerados.
Só por aqui já se vê que o homem se preocupou pela unidade, Deu resposta, Ah, não me parece, O autor está sempre em cima e em baixo com essa coisa da verdade, no céu e na terra, compreenda-se, e já estavas com esse sorrisinho, não se pode dizer nada, vou ter de ler outra vez, Fazes bem, fazemos bem, também vou ler essa Enciclopédia, E depois temos um novo graal, eis a metáfora, Qual, O Conhecimento, Mas, caro Simões, então a instrução e a educação, Isso agora tá tudo no saco do conhecimento, é o que está a dar, Já nem é a cultura, Não, isso está ultrapassado. Interessante, muito interessante é aquela aplicação da literatura na realidade prática da pessoa, cada leitura tem um objectivo, uma função, o Tolstoi sabes para que serve? Não, Para dormir, ahahahahahahahah, essa está boa, Estou a vê-lo lá ao fundo e não gostou nada dessa observação, ahahahahahahahahaha, e agora eu para que servirei, Não sei, quando o nosso Afonso Cruz vier a Seide hei-de perguntar-lhe, queres? Quero, Vou ver se não me esqueço, Prometes? Prometo. Mas ele diz mais, O que diz, que Chandler deve-se ler de manhã, e Rabelais ao deitar, e que se tens Kafka, Homero e Orwell na mesinha de cabeceira é divórcio pela certa, Ó diabo, tenho que ver se a Aninhas não leva esses para a varanda, ahahahahahaha, o homem tem piada. Jantei com esses todos um dia destes, e já que falaste no Tolstoi, Não fui, Foi o escritor, através de um dos muitos, Que mania essa que nós temos, Pois é, Mas dizias, Diz, um dia destes jantei com todos eles, falhaste Simões, Homero, cego, via mais que se tivesse visão, impressionante, mas o que teve piada foi o Tolstoi. Foi um jantar pacato, de vez em quando lá se dizia alguma coisa, mas quem não dizia nada era o Tolstoi, o raio do homem só passava a vida a pedir folhas, para mania, só pedia uma de cada vez, foi uma risota despegada! Mas soube que te safaste, Isso foi verdade, que remédio! E se fossemos ler? Vamos ler!