domingo, 20 de junho de 2010

história do cerco de lisboa




saramago e os possíveis escritores preferidos





In Público / Leituras (17 Out. 1998), pp. 1-2.


saramago e a ética

"Quando falo na Europa como uma referência ética, é porque estamos faltos de ética no mundo. Ética, não é a simples moral, não são regras - a ética tem que ver com uma atitude de espírito."
José Saramago
In Público (9 Out. 1999), p. 27

saramago, a imortalidade


Digo adeus à crónica amarga, à decepção que é a vida neste canto do planeta, irremeidavelmente a minha terra (e não quero outra), e contemplo, do alto do jardim, a noite de verão, o rio luminoso, esta paz não aprendida. Sei que amanhã tudo será diferente, que escreverei a crónica adiada - arma da minha guerra contra as indiferenças e as abdicações -, mas não quero ser ingrato deste esplendor. Deixo cair os braços, deixo que entrem em mim os eflúvios, os aromas, os sons, a riqueza da noite. E respiro devagar, como se respirasse a imortalidade.
José Saramago




saramago, conteúdo programático

  • ... tão certo é que do belo e do feio, da verdade e da mentira, do que se confessa e do que se esconde, fazemos todos nós a nosa casual existência. (A Cidade, p. 11)

  • Ninguém sabe nada de si antes da acção em que tiver de empenhar-se todo. Não conhecemos a força do mar enquanto ele não se move. Não conhecemos o amor antes do amor. (A Cidade, p. 12)

  • É este o efeito das palavras. Assentámos que não há outro meio de nos entendermos e explicarmos, e acabamos por descobrir que ficámos a meio da explicação, e tão longe do entendimento que bem melhor teria sido deixar aos olhos e ao gesto o seu peso de silêncio. (A Aparição, p. 19)

  • Estou diante de ti e não entendo. Sou da tua carne e do teu sangue, mas não entendo. Vieste a este mundo e não curaste de saber o que é o mundo. Chegas ao fim da vida, e o mundo ainda é, para ti, o que era quandi nasceste: uma interrogação, um mistério inacessível, uma coisa que não faz parte da tua herança: quinhentas palavras, um quintal a que em cinco minutos se dá a volta, uma casa de telha-vã e chão de barro. (Carta para Josefa, minha avó, p. 28)

  • E, contudo, é um homem sábio, calado e metido consigo, que só abre a boca para dizer as palavras importantes, aquelas que importam. Fala tão pouco (são poucas as palavras realmente importantes) que todos nos calamos para o ouvir quando no rosto se lhe acende qualquer coisa como uma luz de aviso. Fora isso, tem um modo de estar sentado, olhando para longe, memso que esse longe seja apenas a parede mais próxima, , que chega a ser intimidade. Não sei que diálogo mudo o mantém alheado de nós. (O meu avô, também, p. 29-30)

  • Não é bom olhar para o passado. O passado é aquele armário dos esqueletos de que falam os ingleses, gente discreta, de pouco sol e ainda menos alvoroço. Mas às vezes a memória, por caminhos que nem sabemos explicar, traz para o dia que se está vivendo imagens, cores, palavras e figuras. (O amola-tesouras, p. 33)
  • ... há nas coisas sentidos ocultos que só ocultamente podem ser entendidos. (O amola-tesouras, p. 34)
  • ... cada um de nós neste mundo a querer saber o que cá faz, ou pelo contrário, nada interessado em sabê-lo. Tudo isto, de uma maneira ou de outra, nos ocupa. E assim vamos passando o tempo, vagamente inquietos, vagamente perplexos, como actores que de repente se esqueceram do papel e olham desorientados, à espera da deixa que lhes permita tornar a engrenar no texto. É o caso: falta-nos a deixa. / Entretanto, nesta disponibilidade em que vivemos, pode acontecer (e acontece) que uma certa hora, um certo lugar, uma certa luz, nos façam viajar no tempo, viajar para trás, até outra hora, outra luz e outro lugar que generosamente nos tenham cumulado de promessas. vem-nos então o remorso de não ter sido, ou de ter sido menos do que a nós ficámos devendo. Parece complicado - e é simples. (Cair no céu, pp. 43-44)
  • Deixei-me ficar a ver o céu. Bem sabia que não iria cair para cima. O tempo reconstitui o que desfizera: achei-me quem sou eu e no mundo em que vivo. Vagamente inquieto, vagamente perplexo, primeiro, mas logo, enquanto enxugava uma gota de suor que me escorregava ao longo do pescoço, recobrei a lembrança da frase que me esquecera: «Não sei o que cá faço, e é importante que o saiba. Mas mais importante é fazer.» E para o meu lado direito me voltei, como quem se reconhece e entrega. (Cair no céu, p. 45)

  • Crónicas, que são? Pretextos, ou testemunhos? São o que podem ser. (Viagens na minha terra, p. 52)
  • As palavras são boas. As palavras são más. As palavras ofendem. As palavras pedem desculpa. As palavras queimam. As palavras acariciam. As palavras são dadas, trocadas, oferecidas, vendidas e inventadas. As palavras estão ausentes. Algumas palavras sugam-nos, não nos largam: são como carraças: vêm nos livros, nos jornais, nos slogans publicitários, nas legendas dos filmes, nas cartas e nos cartazes. As palavras aconselham, sugerem, insinuam, ordenam, impõem, segregam, eliminam. São melífluas ou azedas. O mundo gira sobre palavras lubrificadas com óleo de paciência. Os cérebros estão cheios de palavras que vivem em boa paz com as suas contrárias e inimigas. Por isso as pessoas afzem o contrário do que pensam, julgando pensar o que fazem. Há muitas palavras. (As palavras, p. 55)
  • Porque as palavras deixaram de comunicar. Cada palavra é dita para que se não oiça outra palavra. A palavra, mesmo quando não afirma, afirma-se. A palavra não responde nem pergunta: amassa. A palavra é a erva fresca e verde que cobre os dentes do pântano. A palavra é poeira nos olhos e olhos furados. A palavra não mostra. A palavra disfarça. / Daí que seja urgente mondar as palavras para que a sementeira se mude em seara. Daí que as palavras sejam instrumento de morte - ou de salvação. Daí que a palavra só valha o que valer o silêncio do acto. / Há também o silêncio. O silêncio, por definição, é o que se não ouve. O silêncio escuta, examina, observa, pesa e analisa. O silêncio é fecundo. O silêncio é a terra negra e fértil, o húmus do ser, a melodia calada sob a luz solar. (As palavras, p. 56)
  • As palavras não dizem tudo quanto é preciso. Diriam mais, talvez, se fossem asas. (São asas, p. 58)
  • Todas as minhas histórias são verdadeiras, só que às vezes me foge a mão e meto na trama seca da verdade um leve fio colorido que tem nome fantasia, imaginação ou visão dupla. Outras vezes não será nada disto, apenas o gosto ou a conveniência do jogo cifrado. (O cego do harmónio, p. 61)
  • ... nas mãos ou no coração? Se só as mãos sustentam a flor, a vida nos tentará com muita coisa que a flor não suporta: Sei o que digo. E a mesma vida vos carregará de trabalhos e amarguras, e então a flor será pisada e lançada fora. Resta-vos o coração. Se aí conservardes a flor, se é aí que já a tendes - então guardo a vossa resposta como um sinal precioso e uma promessa. E aqui vos agreço, esperança do mundo! (Hip, hip, hippies!, pp. 92-93)
  • ... todo o leitor é, por definição, inteligente... (A vida suspensa, p. 114)

  • A meta está num ponto qualquer, não sabemos onde, mas já que temos de atravessá-la, que seja (como direi?) em glória. Não se trata de aplausos, note-se. É, sim, o canto, o cântico, o hino, a simples ária íntima que dá a cadência do nosso passo acelerado. (A vida é uma longa violência, p. 126)
  • ... precisamos das palavras para continuarmos a ser. (A palavra resistente, p. 133)
  • Para além do horizonte, há espaço infinitamente. (A palavra resistente, p. 134)
  • Outras vezes me tem acontecido contar casos reais ou histórias inventadas, de tal maneira embrechadas que acabo por não saber onde acaba a realidade e onde começa a invenção. /A palavra resistente, pp. 134-135)
  • ... não há outro caminho senão aquele em que podemos reconhecer-nos em cada gesto e em cada palavra, o da resistente fidelidade a nós próprios. (A palavra resistente, p. 135)

  • Tenho um grande respeito pelos historiadores. Acho que desempenham uma tarefa de muita responsabilidade. Gosto deles honestos, objectivos, capazes de consumirem a vida a desenterrar uma verdade. E todo eu sou tolerância e compreensão para os erros de boa-fé - porque os arquivos nem sempre estão à mão de colher, porque entre mil interpretações de um facto é preciso escolher uma [...] Só não perdoo que se torcem os factos ao jeito de conveniências próprias ou alheias. Não se brinca com coisas sérias, e eu não sei de nada mais sério do que a história dos homens. (O Direito e os sinos, p. 147)
  • ... gosto das palavras (oh, se gosto!), mas quereria torná-las pequeníssimas, de modo a caberem muitas. E também quereria que elas fossem densas, carregadas de significação, de sentido, de força, de capacidade de acção. (Esta palavra esperança, p. 152)

  • ... pôr uma palavra adiante da outra, aqui na superfície da terra, e em particular neste desvão do planeta, é uma cto muito importante. Positivo, ou negativo. Será positivo se cada palavra for pesada e medida, restituída ao seu verdadeiro valor - e não usada como cortina de fumo ou porta para o museu das antiguidades retóricas. Será positivo se despertar em quem lê um eco que não venha da obscura condescendência da ilusão e do logro que dormita no fundo da passividade em que temos vivido. (Esta palavra esperança, pp. 152-153)
  • ... sou menos que uma sombra, nem sequer uma nuvem ou fantasma. Tenho a inconsistência da memória, mas também a realidade dela. E é desde que me encontro nesta situação que me sinto mais real, com uma curiosa impressão de eternidade que me lisonjeia. (Carta de Ben Jonson aos estudantes de Direito que representaram Volpone, p. 167)

  • Muitas vezes estas minhas prosas navegam nas barcas engrinaldadas, com acompanhamento de violinos poéticos, de efeitos de luz que vou buscar às transparências cristalinas, às rendas vegetais, aos esbatidos da visão aquática. É pendor de que me não libertarei nunca e de que (por que não dizê-lo?) não me envergonho. Mas hoje resolvi laquear secamente a veia lírica, estancar as efusões, pôr uma barreira adiante das imagens e das comparações. («Salta, cobarde!», p. 183)
  • Neste planeta terra, que os homens habitam, há horas de felicidade, sorrisos, amor, alguma beleza, flores para todos os gostos. E há os monstros. Não se distinguem de nós, que o não somos. Têm um lar, família, amigos, uma vida normal. São civilizados. («Salta, cobarde!», p. 184)

  • ... a terra, quando vista de longe, é como uma festa, toda em branco, verde e azul: uma espécie de noiva com imaginação. (O planeta dos horrores, p. 191)
  • Sou homem e desejo contribuir, na medida das minhas pequenas forças, para o progresso da humanidade a que me orgulho de pertencer. É muito importante este ponto. E espero, se algum dia me vierem pedir contas dos meus actos, isto é, do perjúrio cometido, que os não sei quantos biliões de homens e mulheres que há na terra tomem todos a minha defesa. (Um azul para Marte, p. 195)
  • Já foi dito que o homem é um animal de hábitos. De maus hábitos, sobretudo. E também não é novidade que o mesmo homem é um animal de mitos. Cria-os, submete-se, depois queixa-se deles, e, enquanto não se liberta, transforma a situação em manancial de obras várias e públicas, a que, simplificadamente, dá o nome de arte. O proveito que dos mitos vai tirando paga em abundância de juros os maus bocados por que o fazem passar. E se na realidade vem mostrar o fundo irracional do mito, o homem executa o salto mortal da transposição e da sublimação, como se paralelo ao mundo real houvesse (ou haja) outro mundo mais aprazível e habitável. São mistérios ainda por desvendar. / Vão os mitos acabando, e vão surgindo outros. Por enquanto, o homem não é capaz de viver sem eles, nem sei se alguma vez poderá dispensá-los, ou se lhe convirá. (Coração e lua, p. 199)
  • ... em algum lugar há-de estar a morada dos afectos. (Coração e lua, p. 201)

  • ... somos nós, e só nós, afinal, em corpo inteiro e alma acompanhante, a morada do amor. (Coração e lua, p. 201)
  • Céptico, talvez, mas não desinteressado. (A lua que eu conheci, p. 207)
  • ... companheira imaginação... (Um salto no tempo, p. 211)
  • Digo adeus à crónica amarga, à decepção que é a vida neste canto do planeta, irremediavelmente a minha terra (e não quero outra), e contemplo, do alto do jardim, a noite de verão, o rio luminoso, esta paz não aprendida. Sei que amanhã tudo será diferente, que escreverei a crónica adiada - arma da minha guerra contra as indiferenças e as abdicações -, mas não quero ser ingrato diante deste esplendor. Deixo cair os braços, deixo que entrem em mim os eflúvios, os aromas, os sons, a riqueza da noite. E respiro devagar, como se respirasse a imortalidade. (Noite de verão, p. 220)

  • ... pior do que ter tido e não ter já, é ficar aquém do que se sonhou. (As férias, p. 224)

  • Não há dois sorrisos iguais [...] temos o sorriso da troça, o sorriso superior e o seu contrário humilde, o de ternura, o de cepticismo, o amargo e o irónico, o sorriso de esperança. o de condescendência, o deslumbrado, o de embaraço, e (por que não?) o de quem morre. E há muito mais. Mas nenhum deles é o sorriso. / O sorriso (este, com maiúscula) vem sempre de longe. É a manifestação de uam sabedoria profunda, não tem nada que ver com as contracções musculares e não cabe numa definição de dicionário. Principia por um breve mover de rosto, às vezes hesitante, por um frémito interior que nasce nas mais secretas camadas do ser. Se move músculos é porque não tem outra maneira de exprimir-se. (O sorriso, p. 228)

  • Oponho à ironia o sorriso, este que é compreensão e serenidade, única arma contra o absurdo que vive paredes-meias connosco, couraça contra as agressões - estrada real que se quer desimpedida de miragens e alienações. E chamo-lhe a ferramenta perfeita de transformação, porque com ela sabemos o valor do que tomamos e abandonamos, porque já o sabíamos antes e estamos preparados. (O sorriso, p. 228)

uma flor