segunda-feira, 13 de junho de 2011

camilo, a literatura e a dimensão moral






Camilo Castelo Branco - Cenas da Foz. Lisboa: Círculo de Leitores, 1989.





“O romance tem cousa má!
É a primeira vez que os tipos perpetuam o invento escandaloso de um título sem texto! Um crítico francês anunciou um romance, que, em lugar de principiar pelo princípio, começava no segundo volume. O autor, respeitador do público, explicava o contra-senso, dizendo que os romances eram escritos de modo que tanto fazia ao caso começar do primeiro volume para diante, como do último para trás.
Isto é razoável e persuasivo. Porém, incoerências deste tamanho não se desculpam num romance pensado, filosófico, haurido das fontes do coração, da experiência, e feito expressamente para entrar em quinhão de glória com as Reflexões de Fócion, com o Manual de Epicteto, com os Enxertos Gnómicos de Séneca, com os Caracteres de la Bruyére, excelentes repositórios de filosofia prática, que eu hei-de ler na primeira ocasião, porque me dizem que são livros de muito interesse, que ensinam a procurar a felicidade, como agulha em palheiro, na pobreza, na humildade, e na virtude. Mestres desta ordem têm sempre uma vida eivada de amarguras: isso é o que eu posso desde já afirmar, sem os ter lido. Fôcion sofreu morte dolorosa. Séneca, preceptor de Nero, bem sabem que desastrado remate teve de vida. Epicteto é aquele escravo do Tesouro de Meninos, que exclama, erguendo a canela partida por uma paulada: «Não vos disse eu que ma havíeis de quebrar?» Donde infiro que os preceptores da felicidade andam sempre de candeias às avessas com o género humano, e muitas vezes com a arte de engranzar capítulos de romance, de modo que a história vá bem contada até ao fim, que deve ser onde casa o herói, ou a heroína morre de tubérculos, no uso de óleo de fígados de bacalhau.
João Júnior, sumamente penhorado pelas atenciosas maneiras com que os seus numerosos amigos tem recebido esta sua primogénita criatura, tem a honra de declarar ao público, e mais senhores, que o capítulo XIV foi eliminado deste quadro de costumes, porque havia nele frescura de ideias, fantasia de cores, debuxos copiados da natureza viva, cousas, enfim, tão verdadeiras, tão patriarcais, tão nuas, que o seu editor, depois de montar os óculos, e sorver duas pitadas conspícuas, disse que não patrocinava com o seu nome um capítulo em que o mencionado supra contava os factos como eles tiveram a impudência de acontecer.
Em virtude do que entrei na minha consciência de artista, e vim a um acordo com a moral, aspando as doze páginas em que eu fortalecia os hábitos da natureza bruta com as doutrinas lúcidas dos intérpretes mais abalizados dos mistérios do coração; doze páginas salpicadas de uma erudição exemplificativa, que remontava à criação do globo, para provar que o homem e a mulher, sem o intermédio do merinaque, são dois entes homogéneos, duas substâncias amalgâmicas, dois tomos da mesma obra, duas criaturas, enfim, dos nossos pecados. Nesse capítulo, naufragado no cachopo da moral, tinha eu uma gorda nota comprovativa da minha opinião ideológica a respeito de mulheres, rica de história antiga, em que, sabe Deus com que vigílias, entravam Salomão e Dalila, Péricles e Aspásia, Tibulo e Lésbia, Ovídio e Corina, tudo pessoas que amaram como se ama de uma até quarenta vezes na vida, com todo o ideal arroubado dos anélitos da adolescência, com a fé pura, cândida e imaterial do amor de Voltaire a Madame du Châtelet, do amor de La Rochefoucauld a Madame de La Fayette, do amor da minha vizinha do terceiro andar, que, às duas horas da noite, desce, com uma caixa de lumes prontos, a desandar a chave, que teima em chiar, apesar do azeite prévio, quando um Romeu de capote de mangas lhe assobia a cavatina do Trovador. Tudo isto, e muitas cousas mais, vinham na nota, que prometo embetesgar na primeira cousa que escrever, ainda que seja um artigo sobre o pulgão da batata.
Fortíssimas razões tinha eu para teimar em publicar o meu querido capítulo XIV, visto que era ele o relatório das miudezas que se deram antes e depois do fatal acontecimento da noite de 25 de Agosto de 1826, acontecimento grave e complicado, cujo conhecimento seria a chave do meu romance, se o editor ultra-honesto não teimasse em afirmar que o meu romance não precisa de chave para abrir as portas da eternidade. Pedi-lhe que me deixasse, ao menos, contar o facto em estilo levantado, alegórico, metafórico, ao alcance, apenas, das inteligências superiores. Nem isso. Estava escrito em estilo oriental, balsâmico, todo perfumarias de subtil aroma da alma, e ele teima em dizer que a alma não tem nariz.” (79-81)