domingo, 9 de maio de 2010

fenomenologia do amor

Homem que pensa, que estuda, que trabalha debaixo da influência tenaz duma ideia, que cisma na imortalidade que pode dar-lhe a ciência, ou no dinheiro que pode dar-lhe um livro - tal homem só serve para marido depois que o reumatismo lhe faz ver o celibato à luz da higiene. / Homem que se furta um ou dois meses à canseira dos livros, para amaciar a ridez do espírito nas frivolidades da vida - embora se preocupe imaginando belezas no amor, única frivolidade suportável -, tal homem o que faz é enojar-se um ou dois meses para depois entrar na vida que deixou, abraçar a ciência, esposa legítima que desdenhara, e recordar com tédio as vulgaridades em que se amesquinhou. Este homem não serve para mulher nenhuma. / E nenhuma serve para este homem. / Porquanto: / A mulher de medíocre inteligência (escrevo em Portugal) é entre nós o que, à míngua de sinceridade e não de palavra, se diz «mulher esperta». A mulher esperta é o ente mais defeituoso que se conhece aos olhos do homem que, noutra altura de ideias, lhe vê em baixo a sua insignificância. Esta mulher serve só para um homem extremamente ignorante, ou tolamente fátuo. Se ignorante, crê que é o marido da princesa Magalona; se tolamente fátuo, cuida que, por ser o osso do osso e a carne da carne, é também o espírito de sua mulher.



Não assim o homem que encaneceu a meio caminho da vida sobre os detestáveis in-fólios, e as tiras eternas da composição literária. / Onde está a mulher que possa prender, a atenção do homem, perdida nos mundos etéreos da imaginação? Fora das três ou quatro frases de amor, que se dizem com todos os comentários e variantes em vinte minutos, onde irá ela cevar a ponta da língua magnética? Como suavizará a palestra conjugal de todos os dias, se o marido despegado das coisas terrenas não compreende as vantagens do carvão de pedra sobre o da choça, nem se lhe dá o vestido da vizinha, nem quer saber se João namora Joana há sete anos? / As mulheres faladoras, santo Deus! Que zanga eu tenho às mulheres faladoras, e mormente às que fazem ostentação do palavreado incansável como duma veia de recursos nunca exausta! / Porque é que certas mulheres falam tanto? Acho que é porque não sabem nada. Eu já li... se me lembrasse onde... Parece-me que sei onde foi... Cá está o livro... É justamente nesta página. Ora vejam:"
Camilo, Um Homem de Brios
Bom, amanhã coloca-se aqui o resto.