domingo, 11 de julho de 2010

saramago na playboy

O que me ensinas não é prisão, é liberdade.
José Saramago, O Evangelho Segundo Jesus Cristo



O que temos nestas páginas da "Playboy", como tema central de capa dedicado a José Saramago e ao seu "Evangelho", é não só uma entrevista que o escritor deu à "Playboy" do Brasil em 1995, uma reedição, portanto, como também, por outro lado, uma visão desta modernidade pós "Evangelho", significando isto um "Cristo" indiferente à situação da mulher enquanto ser humano, ou melhor, na imagem de todos nós sermos "cristos" redentores, homens e mulheres, indiferentes uns aos outros, na fuga do real. Se no "Evangelho" de Saramago" Jesus e Maria de Magdala se olham, nesta reportagem sensual da "Playboy" portuguesa, Jesus nunca chega a olhar as mulheres que o rodeiam, exóticas, sensuais, belas, eróticas. Mesmo na capa, este "Jesus" da "Playboy olha frontalmente (de forma sisuda, hirto e frio) o ser humano feminino que tem nos seus braços, dando-nos esta a entender o desvio do seu olhar! O que aqui temos é um pouco da sociedade contemporânea, a indiferença pelo outro enquanto outro, naquela totalidade em que ele poderá representar. Não só pelo outro, mas na viagem do outro ao "EU", nesta reviravolta fantasmática da sociedade em que vivemos. Hoje, somos herdeiros dessa antropologia falhada e focada na sombra de uma trilogia vivencial do ser humano sem frutos, desde Buber, passando por Levinas. Há um quadro, apenas, em que este "Jesus" da "Playboy" levanta as mãos, como que dizendo Vinde até mim, ao meu ser, ao meu corpo, ao meu âmago, a mim todo, e ensinai-me as coisas deste mundo, tal como o "Jesus" saramaguiano pede a Maria de Magdala que lhe ensine toda a sexualidade amorosa que o humano pode trasnsportar e doar em si, um ao outro doando os seus proprios mundos. Cada um pode interpretar como quiser. Não evoco, aqui nestas palavras, apenas o sentido corporal e sexual, o exterior, mas sim toda a interioridade que o ser humano transporta em si, e cada um pode doar ao outro na simplas partilha. Mesmo as meninas da Playboy estão completamente indiferentes a esta personagem que pulula (uma até parece, ao carregar uma arma, pretender dar um tiro, sabe-se lá a quem!) e vai pululando pelo seu meio. Mas, sinceramente, e aqui transcrevo, nunca li nada tão poético, tão fulgorante à volta da união de dois seres que se completam no simples acto de amar, esse amor singelo e simples e absoluto que todos nós procuramos e pretendemos alcançar, nas páginas de Saramago que descrevem o encontro do seu "Jesus" com Maria de Magdala. Esta reportagem da "Playboy" pode significar simplesmente isto: que é preciso reinventar Cristo! Não este "Jesus" frio e distante, mas aquele Jesus que reinventou Deus no Novo Testamento, repleto de compaixão pela dignidade humana. Chesterton não deixa de ter razão. Saramago, à sua maneira, tal como Katzantzakis, em "A Última Tentação de Cristo", e assim apresento dois escritores heterodoxos, e um ortodoxo, Chesterton, não deixam de ter a sua razão: a reinvenção de Cristo! E nada melhor, na perspectiva de Chesterton, pela renovação desse figura filosófica do espanto perante o mundo e na simplicidade do próprio mundo, para a renovação do ser humano. Afinal de contas, a Filosofia começou precisamente pelo espanto...











  • Quis, porém, o destino que, passando ele pela cidade de Magdala, se lhe rebentasse ali, do pé, uma ferida que andava renitente em sarar, e em tal jeito que parecia o sangue não querer estancar-se. Também quis o destino que o perigoso acidente tivese ocorrido à saída de Magdala, mesmo em frente, por assim dizer à porta, de uma casa que ali havia, afastada das outras, como se não quisesse aproximar-se delas, ou elas a repelissem. Vendo que o sangue não dava mostras de querer parar, Jesus chamou, Ó de dentro, disse, e acto contínuo, uma mulher apareceu à porta, como se justamente estivesse à porta de que a chamassem, embora, por um leve ar de surpresa que começou por aparecer-lhe na cara, pudéssemos ser levados a pensar que estaria antes habituada a que lhe entrassem pela casa dentro, sem bater, o que, se bem considerarmos as coisas, teria menos razão de ser que em outro qualquer caso, pois esta mulher é uma prostituta e o respeito que deve à sua profissão manda-lhe que feche a porta de casa quando recebe um cliente. Jesus, que estava sentado no chão, comprimindo a desatada ferida, olhou de relance a mulher que se lhe acercava, Ajuda-me, disse, e, tendo segurado a mão que ela lhe estendia, conseguiu põr-se de pé e dar uns passos, coxeando.

  • Não estás em estado de andar, disse ela, entra, que eu trato-te dessa ferida. Jesus não disse nem sim nem não, o odor da mulher entontecia-o, a ponto de ter-lhe desaparecido, de um momento para o outro, a dor que lhe dera ao abrir-se a chaga, e agora, com um braço por cima dos ombros dela e sentindo a sua própria cintura cingida por outro que evidentemente não podia ser seu, apercebeu-se do tumulto que lhe trespassava o corpo em todas as direcções, se não fosse mais aexcato dizer santidos, porque neles, ou em um que tem esse nome, mas que não é o ver nem o ouvir nem o cheirar nem o gostar nem o tocar, podendo no entanto levar de cada um deles uma parte, aí é que ia bater tudo, salvo seja. A mulher ajudou-o a entrar para o pátio, trancou a porta e fê-lo sentar-se, Espera, disse. Foi dentro e voltou com uma bacia de barro e um pano branco. Encheu de água a bacia, molhou o pano e, ajoelhando-se aos pés de Jesus, sustendo na palma da mão esquerda o pé ferido, lavou-o cuidadosamente, limpando-o da terra, amaciando a crosta estalada através da qual surdia, com o sangue, uma matéria amarela, purulenta, de mau aspecto. Disse a mulher, Não vai ser com água que te curarás, e Jesus disse, Só te peço que me ates a ferida de modo a poder chegar a Nazaré, depois lá me trato, ia a dizer, Minha mãe trata-me, mas emendou porque não queria parecer aos olhos desta mulher como um rapazinho que, por dar uma topada numa pedra, vai a chorar, Mãezinha, mãezinha, à espera do afago, um sopro suave no dedo ofendido, um toque dulcificante dos dedos, Não é nada, meu menino, já passou.



  • Daqui a Nazaré ainda tens muito que andar, mas se é assim que queres, espera só que te ponha um unguento, disse a mulher, e entrou em casa, onde iria demorar-se um pouco mais que antes. Jesus olhou em redor do pátio, surpreendido porque em sua vida nunca vira nada tão limpo e arrumado. Está desconfiado que a mulher é uma prostituta, não por particular habilidade sua em adivinhar profissões à primeira vista, ainda não há muitos dias ele próprio poderia ter sido identificado pelo cheiro a gado cabrum que tresandava, e agora todos dirão, É pescador, foi-se aquele cheiro, outro veio, que não tresanda menos.

  • A mulher cheira a perfume, mas Jesus, apesar da sua inocência, que nnão é ignorância, pois não lhe faltaram ocasiões de ver como procediam bodes e carneiros, tem bom senso que chegue para considerar que cheirar bem do corpo não é razão suficiente para afirmar que uma mulher é prostituta. Na verdade, uma prostituta deveria era cheirar ao que frequenta, a homem, como o cabreiro cheira a cabra e o pescador a peixe, mas talvez, sabe-se lá , essas mulheres se perfumem tanto justamente por quererem esconder, disfarçar ou, mesmo, esquecer o cheiro do homem. A mulher reapareceu com um pequeno boião e vinha a sorrir como se alguém, dentro de casa, lhe tivesse contado uma história divertida. Jesus via-a aproximar-se, mas se os olhos o não estavam enganando, ela vinha muito devagar, como acontece às vezes nos sonhos, a túnica movia-se, ondulava, modelando ao andar o balanço rítmico das coxas, e os cabelos pretos da mulher, soltos, dançavam-lhe sobre os ombros como o vento faz às espigas da seara. Não havia dúvida, a túnica, mesmo para um leigo, era de prostituta, o corpo de bailarina, o riso de mulher leviana. Jesus, em aflição, pediu à sua memória que o socorresse com algumas apropriadas máximas do seu célebre homónimo e autor, Jesus, filho de Sira, e a memória serviu-o bem, murmurando-lhe discretamente, do lado de dentro do ouvido, Foge do encontro duma mulher leviana, para não caíres nas suas ciladas, e logo, Não andes muito com uma bailarina, não suceda que pereças por causa dos seus encantos, e finalmente, Nunca te entregues às prostitutas, para que não te percas a ti e aos teus haveres, perder-se este Jesus de agora ben poderá acontecer, sendo homem e tão novo, mas, quanto haveres, esses já sabemos que não correm perigo porque os não tem, pelo que ele próprio se achará salvo, em chegando a hora, quando a mulher, antes de fechar o contrato, lhe perguntar, Quanto tens. preparado para tudo está, portanto, Jesus. e por isso não o apanha de surpresa a pergunta que ela lhe fez enquanto, agora posto o pé dele sobre o joelho dela, lhe cobria de unguento a ferida,



  • Como te chamas, Jesus, foi o que respondeu, e não disse de Nazaré, porque já antes o tinha declarado, como ela, por ser aqui que viva, não disse de Magdala, quando, ao perguntar-lhe ele por sua vez o nome, respondeu que Maria. Com tantos movimentos e observações, acabou Maria de Magdala de fazer o penso ao dorido pé de Jesus, remantando-o com uma sólida e pertinente atadura, Aí tens, disse ela, Como te devo agradecer, perguntou Jesus, e pela primeira vez os seus olhos tocaram os olhos dela, negros, brilhantes comoc arvões de pedra, mas onde perpassava, como uma água que sobre água corresse, uma espécie de volptuosa velatura que atingiu em cheio o corpo secreto de Jesus.


  • Guarda-me na tua lembrança, nada mais, e Jesus, Não esquecerei a tua bondade, e depois, enchendo-se de ânimo, Nem te esquecerei a ti, Porquê, sorriu a mulher, Porque és bela, Não me conheceste no tempo da minha beleza, Conheço-te na beleza desta hora.



  • O sorriso dela esmoreceu, extinguiu-se, Sabes quem sou, o que faço, de que vivo, Sei, Não tiveste mais que olhar para mim e ficaste a saber tudo, Não sei nada, Que sou prostituta, Isso sei, Que me deito com homens por dinheiro, Sim, Então é o que eu digo, sabes tudo de mim, Sei só isso. A mulher sentou-se junto dele, passou-lhe suavemente a mão pela cabeça, tocou-lhe na boca com a ponta dos dedos, Se queres agradecer-me, fica este dia comigo, Não posso, Porquê, Não tenho com que pagar-te, Grande novidade, Não te rias de mim, Talvez não creias, mas olha que mais facilmente me riria de um homem com a bolsa cheia, Não é só a questão do dinheiro, Que é então. jesus calou-se e voltou a cara ao lado. Ela não o ajudou, podia ter-lhe perguntado, És virgem, mas deixou-se ficar calada, à espera. Fez-se silêncio, tão denso e profundo que parecia que apenas os dois corações soavam, mais forte e rápido o dele, o dela inquieto com a sua própria agitação.



  • Jesus disse, Os teus cabelos são como um rebanho de cabras descendo das vertentes pelas montanhas de Galaad. A mulher sorriu e ficou calada. Depois Jesus disse, Os teus olhos são como as fontes de Hesebon, junto à porta de Bat-Rabim. A mulher sorriu de novo, mas não falou. Então Jesus voltou lentamente o rosto para ela e disse, Não conheço mulher. Maria segurou-lhe nas mãos, Assim temos de começar todos, homens que não conheciam mulher, mulheres que não conheciam homem, um dia o que sabia ensinou, o que não sabia aprendeu, Queres tu ensinar-me, Para que tenhas de agradecer-me outra vez, Dessa maneira, nunca acabarei de agradecer-te, E eu nunca acabarei de ensinar-te.
  • Maria de Magdala conduziu Jesus até junto do forno, onde o chão era de ladrilhos de tijolo, e ali, recusando o auxílido dele, por suas mãos o despiu e lavou, às vezes tocando-lhe o corpo, aqui e aqui, com as pontas dos dedos, beijando-o de leve no peito e nas ancas, de um lado para o outro. Estes roces delicados faziam estremecer Jesus, as unhas da mulher arrepiavam-no quando lhe percorriam a pele, Não tenhas medo, disse Maria de Magdala. Enxugou-o e levou-o pela mão até à cama, Deita-te, eu volto já. Fez correr um pano cuma corda, novos rumores de águas se ouviram, depois uma pausa, o ar de repente tornou-se perfumado e Maria de Magdala apareceu nua. Nu estava também Jesus, como ela o deixara, o rapaz pensou que assim é que devia estar certo, tapar o corpo que ela descobrira teria sido como uma ofensa. Maria parou ao lado da cama, olhou-o com uma expressão que era, ao mesmo tempo ardente e suave, e disse, És belo, mas para seres perfeito, tens de abrir os olhos. Hesitando, Jesus, abriu-os, imediatamente os fechou, deslumbrado, tornou a abri-los e nesse instante soube o que em verdade queriam dizer aqueles versos do rei Salomão, As curvas dos teus quadris são como jóias, o teu umbigo é uma taça arredondada, cheia de vinho perfumado, o teu vente é um monte de trigo cercado de lírios, os teus dois seios são como dois filhinhos gémeos de uma gazela, mas soube-o ainda melhor, e definitivamente, quando Maria se deitou ao lado dele, e, tomando-lhe as mãos, puxando-as para si, as fez passar, lentamente por todo o seu corpo, os cabelos e o rosto, o pescoço, os ombros, os seios, que docemente comprimiu, o ventre, o umbigo, o púbis, onde se demorou, a enredar e a desenredar os dedos, o redondo das coxas macias, e, enquanto tudo isto fazia, ia dizendo em voz baixa, quase num sussurro, Aprende, aprende o meu corpo.



  • Jesus olhava as suas próprias mãos, que Maria segurava, e desejava tê-las soltas para que pudessem ir buscar, livres, cada uma daquelas partes, mas ela continuava, uma vez mais, outra aindam e dizia, Aprende o meu corpo, aprende o meu corpo. Jesus respirava precipitadamente, mas houve um momento em que pareceu sufocar, e isso foi quando as mãos dela, a esquerda colocada sobre a testa, a direita sobre os tornozelos, principiaram uma lenta carícia, na direcção uma da outra, ambas atraidas ao mesmo ponto central, onde, quando chegadas, não se detiveram mais do que um instante, para regressarem com a mesma lentidão ao ponto de partida, donde recomeçaram o movimento. Não aprendeste nada, vai-te, dissera Pastor, e quiçá quisesse dizer que ele não aprendera a defender a vida. Agora Maria de Magdala ensinara-lhe, Aprende o meu corpo, e repetia, mas doutra maneira, mudando-lhe uma palavra, Aprende o teu corpo, e ele aí o tinha, o seu corpo, tenso, duro, erecto, e sobre ele estava, nua e magnífica, Maria de Magdala, que dizia, Calma, não te preocupes, não te movas, deixa que eu trate de ti, então sentiu que uma parte do seu corpo, essa, se sumira no corpo dela, que um anel de fogo o rodeava, indo e vindo, que um estremecimento o sacudia por dentro, como um peixe agitando-se, e que de súbito se escapava girtando, impossível, não pode ser, os peixes não gritam, ele, sim, era ele quem gritava, ao mesmo tempo que Maria, gemendo, deixava descair o seu corpo sobre o dele, indo beber-lhe da boca o grito, num sôfrego e ansioso beijo que desencadeou no corpo de Jesus um segundo e interminável frémito.

José Saramago















o livro que tinha, depois não, e agora já

Este é um livro que pouco tem sido falado. "Manual de Pintura e Caligrafia" tem a significação notável de romper com a ficcção tradicional portuguesa. Abre as portas para um novo mundo... um romance deslumbrante! Ficam aqui as páginas de um trabalho, dedicado a este livro, que então fiz na licenciatura de Filosofia, em 2002, no âmbito da disciplina Filosofia e Cultura em Portugal no Século XX. Fala-se de "Levantado do Chão", sim, mas este ainda é mais importante na revelação da linguagem saranaguiana. Só tenho pena de ter perdido a edição do "Manual" pelo Círculo de Leitores, já que aqui tinha os meus apontamentos, os meus sublinhados, pistas de leitura, e não seu por onde ele anda! Emprestei-o, já não me lembra a quem, e fiquei sem ele. Um dia destes coloco aqui as frases, os sublinhados, as quais estão num outro caderno.