sábado, 6 de novembro de 2010

seide, ponto do universo

Este blog, como não poderia deixar de ser, tem tido, desde o seu início, várias referências a Camilo e a Seide. O que coloquei ontem faz parte de um projecto editorial que tenho em vista há já alguns anos à volta de Camilo, aliás, dois, um dicionário temático e um breviário, o qual já teve várias designações, do género "O Minho de Camilo: breviário de Vila Nova", "O Minho de Camilo: entre a ficção e a realidade", "Famalicão de Camilo", "Itinerário Camiliano: prolegómanos a Vila Nova", "Itinerário Camiliano do Minho, Vila Nova de Famalicão e Outras Coisas Mais" e, o primeiro das primeiras evidências titulares, "Breviário Camiliano". Aos poucos irei aqui colocar muitas referências e textos de Camilo não só sobre Vila Nova de Famalicão, como igualmente do seu Minho, do qual, e apesar de tudo, soube prescrutar como mais nenhum outro escritor, aquela interioridade do humano. É por isso que ainda hoje se lê Camilo. E hoje, em termos ilustrativos, reproduzo este óleo de António Lino, o qual foi publicado no "Boletim da Casa de Camilo", no n.º 1 da 1.ª série do primeiro trimestre de 1964, com o título de "Casa Assombrada", título místico este.








MINHO


"Em testemunho da regalada leitura que V. Ex.ª me deu com o seu "Minho", lhe ofereço uma das novelas de cá. O Minho tem o romanesco da árvore e o romance da família. A paisagem sugeriu-lhe, meu caro poeta, as prosas floridas do ridente livro. O seu estilo tem a macia luz do luar das noites estivas, e o cadencioso murmúrio das ribeiras onde o céu estrelado se espelha. / O Minho lucra muito, visto assim de passagem, na imperial de uma diligência, lá muito no galarim do tejadilho, onde as moscas, onde as moscas não se álem a ferretoar-nos a testa e a sevandijar-nos os beiços convulsos de lirismo. / Viu V. Ex.ª perfeitamente o Minho por fora: as verduras ondulando nas pradarias, os jorros de água espumando na espalda dos outeiros, os fraguedos às cavaleiras dos milharais, a amendoeira a florejar ao lado do pinheiral bravio, as ruínas do paço senhorial com os seus tapetes de ortigas e guadalmecins de musgo ao pé da chaminé escarlate e verde do negreiro a golfar rolos turbinosos de fumo indicativo de panelas grandes e galinhas gordas, lardeadas de chouriços. Simultaneamente, ouviu V. Ex.ª o som da buzina pastoril ressonando a sua longa toada nas gargantas da serra; viu os espantadiços rebanhos alcandorados nos espinhaços dos montes, e os rafeiros à ourela das estradas com os focinhos nas patas dianteiras, orelhas fitas e olhar arrogante. Reparou decerto na pachorra estóica do boi cevado, que parece estar contemplando em si mesmo a metempsicose em futuro cidadão de Londres mediante o processo do bife. Tudo isto, que é a forma objectiva do Minho romântico viu V. Ex.ª, afora o mais que aformoseia o seu livro, os encarecimentos, as lisonjas, as feitiçarias da arte com que V. Ex.ª disputa primores à natureza. / Mas o que D. António da Costa não teve tempo de ver e apalpar foi o miolo, a medula, as entranhas românticas do Minho; quero dizer - os costumes, o viver que por aqui palpita no povoado destes arvoredos onde assobia o melro e a filomela trila. / Ah! meu amigo! Romances, tecidos de casos cândidos e inocentes, apenas os fazem por aqui os pássaros em Abril quando urdem e afofam os seus ninhos 8...] / E é neste meio que eu me abalanço a esgaratujar novelas. Há treze anos que apeguei por esse Minho, em cata do bálsamo dos pinheirais e das fragrâncias das almas inocentes. Diziam-me que a rusticidade era o derradeiro baluarte da pureza, e que os lavradores do Minho, nivelados com os saloios da Estremadura, eram os cândidos pastores da Arcádia comparados aos malandrins de Gomorra." (Camilo, O Comendador)

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