quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

o voo da passarola


O vento está do Sul, uma brisa que mal faz agitar os cabelos de Blimunda, com esta aragem não poderão ir a lado algum, seria o mesmo que querer atravessar o oceano a nado, por isso Baltasar pergunta, Dou ao fole, todas as moedas têm duas faces, primeiro proclamou o padre, Só há um Deus, agora quer Baltasar saber, Dou ao fole, primeiro o sublime, depois o trivial, quando Deus não sopra, tem o homem de fazer força. Mas o padre Bartolomeu Lourenço parece ter sido tocado por um ramo de estupor, não fala, não se mexe, apenas olha o grande círculo da terra, uma parte de rio e mar, uma parte de monte e planície, se aquilo não é espuma, além, será a vela branca duma nau, se não for farrapo de névoa é fumo de chaminé, e contudo dir-se-ia que o mundo acabou, os homens nele, o silêncio aflige, e o vento caiu, nem um cabelo de Blimunda se move, Dá ao fole, Baltasar, disse o padre. / É como a pedaleira de um órgão, tem umas sapatas para encaixe dos pés, e, à altura do peito, fixada ao cavername da máquina, há uma barra para apoio dos braços, não é nenhuma invenção complementar do padre Bartolomeu Lourenço, foi ir à sé patriarcal e imitar do órgão que lá está, a diferença é que neste não há música para ouvir, apenas o resfolgo do sopro atirado para as asas e para a cauda da passarola, que finalmente começa a mover-se, devagar, tão devagar que só de a ver assim cansa, e ainda não chegou a coar um tiro de besta já é Baltasar que está cansado, também desta maneira não vamos a parte alguma. De cara fechada, o padre avalia os esforços de Sete-Sóis, compreende que a sua grande invenção tem um ponto fraco, no espaço celeste não se pode fazer como na água, meter os remos ao ar quando falta o vento, Pára, não dês mais aos foles, e Baltasar, esgotado, senta-se no fundo da máquina. / O susto, o júbilo, cada qual de sua vez, já passaram, agora vem o desânimo, subir e descer sabem eles, estão como homem que fosse capaz de levantar-se e deitar-se, mas não de andar. O sol vai baixando para o lado da barra, já se estendem as sombras na terra. O padre Bartolomeu Lourenço sente uma inquietação cuja causa não causa discernir, mas dela o distrai a súbita observação de que se orientam para o Norte as nuvens de fumo de uma queimada distante, quer isto dizer que, próximo da terra, o vento não deixou de soprar. Manobra a vela, estende-a um pouco mais, de modo a cobrir de sombra outra fileira de bolas de âmbar, e a máquina desce bruscamente, porém não o bastante para apanhar o vento. Mais uma fileira deixa de receber a luz do sol. A queda é tão violenta que o estômago parece querer saltar-lhes pela boca, e agora sim, o vento colhe a máquina com uma mão poderosa e invisível e lança-a para a frente, com tal velocidade que de repente fica Lisboa para trás, já no horizonte, diluída numa bruma seca, é como se finalmente tivessem abandonado o porto e as suas amarras para ir descobrir os caminhos ocultos, por isso se lhes aperta o coração tanto, quem sabe que perigos os esperam, que adamastores, que fogos de santelmo, acaso se levantam do mar, que ao longe se vê, trombas de água que vão sugar os ares e o tornam a dar salgado. Então Blimunda perguntou, Aonde vamos, e o padre respondeu, Lá aonde não possa chegar o braço do Santo Ofício, se existe esse lugar. / Este povo, que tanto espera do céu, olha pouco para o alto onde se diz que o céu é. Anda gente a trabalhar nos campos, as pessoas, nas aldeias, entram e saem das casas, vão ao quintal, à fonte, agacham-se atrás dum pinheiro, sómuma mulher que está deitada num restolho com um homem em cima de si, cuida ver qualquer coisa a passar no céu, mas julga serem visões próprias de quem está a gostar tanto. Só as aves, curiosas, voam, e perguntam, girando em redor da máquina ansiosamente, que é, que é, talvez seja este o messias dos pássaros, em comparação, a águia não passa de um S. João Baptista qualquer, Após mim vem aquele que é mais forte do que eu, a história da aviação não acaba aqui. Durante algum tempo voaram acompanhados por um milhafre que assustara e fizera fugir todos os pássaros, iam só os dois, o milhafre adejando e pairando, percebe-se que voe, a passarola sem mover as asas, não soubéssemos nós que isto é feito de sol, âmbar, nuvens fechadas, ímanes e lamelas de ferro, e não acreditaríamos no que os nossos olhos vêem, além de que não teríamos a desculpa da mulher que estava deitada no restolho e já não está, acabou-se-lhe o gosto, daqui nem o sítio se vê. / O vento mudou para Sudeste, sopra com muita força, a terra passa em baixo como a superfície móvel de um rio que transportasse na corrente campos, bosques, paredes brancas, velas de moinhos, e também fios de água, que forças seriam capazes de fazer a separação dessas águas, o grande rio que passa e tudo leva consigo, os pequenos regatos que nele procuram caminho, água dentro da água, e não o sabem. / Estão os três voadores à proa da máquina, vão na direcção do poente, e o padre Bartolomeu Lourenço sente que a inquietação regressou e cresce, é pânico já, enfim vai ter voz, e essa voz é um gemido, quando o sol se puser, descerá irremediavelmente a máquina, talvez caia, talvez se despedace e todos morrerão, É Mafra, além, grita Baltasar, parece o gajeiro a bradar do cesto da gávea, Terra, nunca comparação alguma foi tão exacta, porque esta é a terra de Baltasar, reconhece-a, mesmo nunca a tendo visto do ar, quem sabe se por termos no coração uma orografia particular que, para cada um de nós, acertará com o particular lugar onde nascemos, o côncavo meu no teu convexo, no meu convexo o teu côncavo, é o mesmo que homem e mulher, mulher e homem, terra somos na terra, por isso é que Baltasar grita, É a minha terra, reconhece-a como um corpo. Passam velozmente sobre as obras do convento, mas desta vez há quem os veja, gente que foge espavorida, gente que se ajoelha ao acaso e levanta as mãos implorativas de misericórdia, gente que atira pedras, o alvoroço toma conta de milhares de homens, quem não chegou a ver, duvida, quem viu, jura e pede o testemunho do vizinho, mas provas já ninguém as pode apresentar porque a máquina afastou-se na direcção do sol, tornou-se invisível contra o disco refulgente, talvez não tivesse sido mais que uma alucinação, já os cépticos triunfam sobre a perplexidade dos que acreditaram. / Em poucos minutos, a máquina atinge a costa do mar, parece que a está puxando o sol para a levar ao outro lado do mundo. O padre Bartolomeu Lourenço compreende que vão cair na água, puxa violentamente a corda, a vela corre toda para um lado, fecha-se de golpe, e a subida é tão rápida que a terra se alarga de novo e o sol surge muito acima do horizonte. É demasiado tarde, porém. Para o lado do oriente já se avistam sombras, a noite está-se aproximando, não é possível fugir-lhe. Pouco a pouco, a máquina começa a derivar para nordeste, em linha recta, obliquando na direcção da terra, sujeita à dupla atracção da luz, que rapidamente enfraquece, mas ainda tem forças para a sustentar no espaço, e da escuridão nocturna, que já oculta os vales distantes. Agora não se sente o vento natural, vencido pela violenta corrente de ar provocada pela descida, pelo silvo agudo que a deslocação faz vibrar na cobertura de vime. O sol está pousado no horizonte do mar, como uma laranja na palma da mão, é um disco metálico retirado da forja para arrefecer, já o seu brilho não fere os olhos, foi branco, cereja, rubro, vermelho, ainda fulge, mas sobriamente, está a despedir-se, adeus, até amanhã, se houver amanhã para os três nautas aéreos que tombam como uma ave ferida de morte, mal equilibrada nas asas curtas, com o seu diadema de âmbar, em círculos concêntricos, queda que parece infinita e vai acabar. Na frente deles ergue-se um vulto escuro, será o adamastor desta viagem, montes que se erguem redondos da terra, ainda riscados de luz vermelha na cumeada. O padre Bartolomeu Lourenço olha indiferente, está fora do mundo, para além da própria resignação, espera o fim que não vai tardar. Mas de súbito Blimunda solta-se de Baltasar, a quem convulsa se agarrara quando a máquina precipitou a descida, e rodeia com os braços uma das esferas que contêm as nuvens fechadas, as vontades, duas mil são mas não chegam, cobre-as com o corpo, como se as quisesse meter dentro de si ou juntar-se a elas. A máquina dá um salto brusco, levanta a cabeça, cavalo a que puxaram o bridão, suspende-se por um segundo, hesita, depois recomeça a cair, mas menos depressa, e Blimunda grita, Baltasar, Baltasar, não precisou chamar três vezes, já ele se abraçara com a outra esfera, fazia o corpo com ela, Sete-Luas e Sete-Sóis sustentando com as suas nuvens fechadas a máquina que baixava, agora devagar, tão devagar que mal rangeram os vimes quando tocou o chão, só bandeou para um lado, não havia ali espeques para a receber, é que não se pode ter tudo. Frouxos de membros, extenuados, os três viajantes escorregaram para fora, tentaram ainda segurar-se à amurada, não o conseguiram, e, rolando, acharam-se estendidos no chão, sem sequer feridos de raspão, é bem verdade que não se acabaram os milagres, e este foi dos bons, nem foi preciso invocar S. Cristóvão, ele lá estava, vigiando o trânsito, viu aquele avião desgovernado, deitou-lhe a grande mão e evitou a catástrofe, para seu primeiro milagre aéreo não esteve nada mal.” (José Saramago, Memorial do Convento, 191-199). Itálicos meus.




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