
O sr. Júlio Brandão
Diz não ver correntes literárias que
não se tenham há muito observado
Ao contrário do que toda a gente se tem permitido manifestar, nós não procuramos somente os críticos, nem exclusivamente os literatos, para esclarecer a situação da literatura portuguesa contemporânea.
São novos e velhos, críticos e não críticos, prosadores, poetas, dramaturgos, romancistas, etc., etc., que vêm dizer de si e do que através das suas especialidades eles vêm na república das letras.
Só assim se conseguirá esclarecer o assunto.
O sr. Júlio Brandão, que é um literato por demais conhecido no nosso meio, foi justamente chamado a depor neste inquérito.
A interessante carta que nos enviou põe-nos diante dos olhos mais uma nova fase do prisma que todos andamos a espreitar amorosamente, desde o começo da publicação deste inquérito. Ei-la:
Meu prezado colega: só hoje me é possível responder ao seu amável convite, em globo, e muito atabalhoadamente. Perdoe-me!
Parece-me que a nossa literatura continua a ser acentuadamente subjectiva e lírica; nós somos um povo de poetas, meu amigo, e de poetas amorosas. Somos capazes de todos os heroísmos – tendo uma estrela a alumiar-nos.
À parte certas alterações formais, na essência não vejo nada de novo, nas diversas manifestações literárias. Não observo correntes, que se não tivessem há muito observado.
A poesia moderna tem, na realidade, cultores notáveis; é variada e rica – precisamente porque cada um, dos bons, bebe pelo seu copo. Não vejo que se tenha criado nenhuma nova poesia; vejo poetas diferentes, cada um com o seu temperamento e a sua arte. E como a nossa poesia é lírica, os poetas sinceros, arrancando os seus poemas da sua mais profunda sensibilidade, têm de ser pessoais e portugueses...
E veja: os romancistas que melhor exprimiram o sentir português foram Júlio Dinis e Camilo; e as novelas que têm alcançado êxito são as que se entretecem de aventura apaixonada, ou que vibram de lirismo, de elegia, de piedade.
O nosso mais notável novelista moderna é, para mim, D. João de Castro; creio até que será o nosso único novelista actual; os outros, e alguns de talento, são romancistas.
A diferença, para mim, de novela e romance é a que existe entre os processos de Camilo e de Eça de Queirós, para não sair de Portugal.
Quer dizer de teatro? Parece-me evidentemente em decadência. Guerra Junqueiro, quando frisou a diferença entre o povo espanhol, intensamente dramático, e o português, vascularmente elegíaco, indicou naturalmente a razão porque o nosso teatro tem apenas lampejos efémeros. A última revivescência foi-lhe dada, triunfalmente, por Henrique Lopes de Mendonça. O Duque de Viseu marca época no teatro português.
Além deste escritor insigne, e não falando nos deliciosos idílios de D. João da Câmara, tão nossos Júlio Dantas, Marcelino Mesquita e Afonso Lopes Vieira hão-de continuar a enriquecer a nossa literatura dramática.
... Mas, afinal, quando serão proibidos os cinematógrafos?
Deixei de propósito para último lugar o caso do renascimento literário entre nós – e quem o representa. Era o ponto burlesco.
É certo que existe uma taboleta «Renascença», com uma revista pendurada; mas tudo isso me parece uma patuscada de vaudeville. Não quer isto dizer que não colaborem nesse grupo homens de real talento; mas que fazem eles renascer? Não, a Renascença é uma filarmónica, ou melhor, uma cooperativa em que o sócio-gerente, o impagável Pascoaes, entrelaça na fonte de Ária e de Semita os loiros do maior génio europeu contemporâneo. Ele afirma-o, e a rapaziada mais nova acredita-o sob a palavra de honra de Pascoaes.
Um movimento dirigido por ele – «para orientar as classes mais cultas» – é uma coisa imprevista de audácia e de estupidez. As classes mais cultas! O sr. Pascoaes é uma bexiga de porco, a rebentar de vaidade – e afectando modéstia, bondade, ternura ariana. Na essência é um tartufo. É um Budasinho que usasse navalha de ponta e mola. De uma ignorância e de uma abundância poética flitiva. É ver as baboseiras que escreve, em prosa de colegial; é ver as suas notas de crítica – em que, nas entrelinhas pelo menos, ele é sempre o Supremo Génio, o mais profundo filósofo contemporâneo.
Os versos deste ária misturado de semita são de uma arte pobríssima, sem o menor equilíbrio estético – aqui e ali com trechos líricos felizes, mas que ele embrulha em longas tiradas do Rosalino Cândido. E sempre o mesmo Saudosismo – que não é o de Garrett, porque Garrett é um asno, mas é o da Raça, do ária e do semita, que deu a Virgem Maria e Vénus, o cristianismo e o paganismo. O que ele sabe de raças! Faz vertigens!
Além disso, Pascoaes, de vez em quando, diz ao orbe estupefacto o que se salvará no oceano das idades, das letras portuguesas. Quer saber? São dois sonetos de Antero; o episódio do Adamastor; uma das cartas de Soror Mariana; a oração à Luz, de Junqueiro, e pouco mais, à parte a obra dele, Pascoaes, que o digno homem está a refundir em Amarante, para lhe arrancar tudo que não seja dos árias ou dos semitas, da raça portuguesa... Que lhe parece o pândego?...
Aquela Oração à Luz é, de resto, uma generosidade do ária. É claro que Pascoaes, desde os tempos do franquismo, que tãoa rdentemente amou, não simpatiza com o grande Poeta; mas, desde que Pascoaes apareceu republicano... histórico, quis ser mãos largas com o autor da Pátria: aplaude-lhe a Oração à Luz: corre a salvá-la!
Mas porque é que os Simples se não podem integrar nos árias? Não, não! Pascoaes não permite. Mas porque é que João de Deus é sempre maltratado, o divino poeta, nas baboseiras vergonhosas que bolsa o sr. Pascoaes? Mas porque é que os poetas novos do talento de Manuel da Silva Gaio, de Eugénio de Castro, de João de Barros, de Augusto Gil, de Guedes Teixeira, não falando em mim, é claro, que sou réprobo, em muitos outros anteriores, e em vários rapazes que se têm revelado brilhantemente, não podem ser descendentes dos Árias e dos Semitas? É que o sr. Pascoaes não gostam que lhe chamem mistificador; não lhe convém que, assim como gritaram ao velho rei no conto de Andersen, « que ele ia nú», que digam também, entre um coro de aplausos ingénuos ou inconscientes, que o sr. Pascoaes é um subalterno a armar ao efeito – ou um caso de manicómio. Não quer que lhe rebentem a bexiga de porco.
Terminando: a Renascença não existe; existe a Águia. É claro que serão sempre belas as coisas belas que lá forem escritas – que servem para amparar no seu trono de papelão, por pouco tempo, o pateta de revista de ano que a dirige.
E sabem quem são, entre outros, os criadores da Renascença? Os srs. Carlos de Oliveira, Augusto Santa Rita, Afonso Mota Guedes.
João de Deus e Garrett nada representam na raça. Representam aqueles!
Bom, já escrevemos demais – e convém esperar um pouco, visto que o homem está a rever a sua Obra – a maior da Europa.
Porque aquilo de chamar a Junqueiro e a Gomes Leal poetas europeus, leva água no bico... Seria até um caso de psicologia que eu desfiaria gora, e que seria divertidíssimo.
Mas já tenho abusado, não é verdade?




Júlio Brandão - "Polémica Literária". In
O Mundo. Lisboa, Ano 13, n.º 4356 (23 Out. 1912), p. 3.