segunda-feira, 27 de junho de 2011

revisitar uma polémica literária teixeira de pascoaes e júlio brandão em 1912



"Passada a euforia nefelibata, [Júlio] Brandão irá cultivar uma estética romântica, sentimental e folclorizante, sendo precisamente tal características que irá induzir o nosso autor no afastamento da literatura portuguesa, imbuíndo Brandão, na sua caminhada de publicista, para um espírito lusitanista, voitalista e saudosista. Melhor explicando, Brandão ao revalorizar e ao memorializar o simbolismo e o nefelibatismo nota-se uma espécie de individualismo mítico, até porque a memorialização do seu tempo inicial de escritor / poeta revela que não está particularmente interessado com as mutações do seu momento presente histórico [...] Será, então, a partir deste momento que se nota de facto um afastamento do nosso autor relativamente à evolução estético-literária da cultura portuguesa..., passando pela Renaswcença Portuguesa, apesar de ter colaborado no seu órgão oficial "A Águia", assim como na sua antecedente "A Rajada", pelo modernismo e "Orfeu" até ao movimento dos seareiros e até mesmo pelos presencistas. Daqui o seu conflito pessoal, jamais literário, com Teixeira de Pascoaes, este de maior valia literária." (135-136).


Amadeu Gonçalves - "Literatura & Imprensa: do local ao global". In Boletim Cultural. V. N. de Famalicão, 3.ª série, n.º 2 (2006), pp. 121-144.




Amadeu Gonçalves - "Júlio Brandão e Teixeira de Pascoaes". In Opinião Pública. V. N. de Famalicão, Ano 1, n.º 26 (5 Fev. 1991), p. 12.



Participa Júlio Brandão no Inquérito Literário promovido por Boavida Portugal e inicia a sua polémica com Teixeira de Pascoaes.

INQUÉRITO LITERÁRIO.
Inquérito literário. Org. Boavida Portugal. Lisboa: Livraria Clássica Editora, 1915.
«O Snr Julio Brandão diz não vêr correntes literárias que não se tenham há muito observado», pp. 94-99. (1)

Passa-se isto em 1912. Um redactor do jornal República promove um inquérito à vida literária portuguesa e consulta os nossos intelectuais mais representativos, desde Júlio de Matos e Gomes Leal até a jovens como Vila Moura e Augusto de Castro. Boavida Portugal, o autor da iniciativa, não lhe avaliando as consequências, desencadeia uma torrente caudalosa de réplicas e comentários de quanto escritor se achou molestado na suas obras pelos inquiridos. A lista dos esclarecimentos e queixas é imensa![1]


[1] António Manuel Couto Viana – “Júlio Brandão”. In As (e)vocações literárias: estudos & memórias. Lisboa: [s. n.], 1980, pp. 176-180.







O sr. dr. Teixeira de Pascoaes[1]

Diz que a poesia religiosa da Raça é
o primeiro sinal do seu renascimento


Há nomes que naturalmente ocorrem ao debater-se determinado assunto. Assim, num inquérito à vida literária portuguesa, o nome do sr. dr. Teixeira de Pascoaes, não só como poeta, mas, sobretudo, como director da revista-órgão da Renascença Portuguesa A Águia, impunha-se naturalmente.
Depois, como um dos quesitos do inquérito indaga, ainda, da existência e orientação da renascença literária em Portugal, devíamos, naturalmente, ouvir alguém que a representasse oficialmente e ninguém mais competente do que aquele que é considerado chefe dos renascentes.
Foi-nos impossível consultar pessoalmente, acerca deste inquérito, o sr. dr. Teixeira de Pascoaes.
O ilustre autor do Sombras, concordando plenamente connosco, no modo de ver a respeito da responsabilidade dos intelectuais chamados a fazer afirmações perante o seu país, escreveu-nos a seguinte carta:

Meu bom amigo: acerca das perguntas que me faz sobre o movimento literário do país, envio-lhe as seguintes ligeiras e incompletas considerações. Espero que me perdoe o seu nulo valor e falta de interesse crítico, e peço-lhe que tome estas minhas palavras apenas como um desejo de satisfazer o seu amável pedido. O assunto proposto exige demorada atenção e longo trabalho; e isso não me é possível num momento em que o meu espírito anda tão preocupado com outras coisas, entre as quais a revisão e aperfeiçoamento dos meus livros já publicados, cuja próxima segunda edição pertencerá à «Renascença Portuguesa». Direi, de passagem, que o meu pensamento poético desenvolveu-se em mim com tal rapidez que, para não lhe ficar atrás, tive de o exteriorizar em livros escritos à pressa. Compreende-se, portanto, a necessidade de corrigir e aperfeiçoar a minha obra, que já consta de dez volumes compostos e publicados num período de onze anos. Só peço a Deus saúde e tempo para conseguir este maior desejo da minha vida, a única razão da minha vida. O amor que dedico à minha obra não é somente um amor paterno. Amo-a, porque estou convencido de que ela deu ao espírito português alguma coisa que lhe faltava.
Eis o que lhe posso responder à pergunta que me fez acerca do meu papel na literatura contemporânea. E já disse o bastante para ofender a minha repugnância em falar de mim e esse aspecto mais simpático da Caridade – que se chama Modéstia.
Na época actual, pertence à Poesia o lugar mais alto na nossa literatura. Não digo isto por causa da minha pessoa, que pode ser posta de parte sem que se torne sensível a sua falta. Nem quero mesmo referir-me aos dois maiores poetas europeus – Guerra Junqueiro e Gomes Leal.
Basta-me falar de António Correia de Oliveira, Jaime Cortesão, Afonso Lopes Vieira, Mário Beirão, Augusto Casimiro, Afonso Duarte, e, depois destes, dos novíssimos poetas, Carlos de Oliveira, Augusto Santa Rita, Afonso Mota Guedes. Eis uma vasta seara espiritual dadivosa e prometedora dos mais belos frutos. Estes poetas criaram em Portugal uma poesia profundamente portuguesa e original. Eles bebem a sua inspiração no mais íntimo veio religioso da alma lusitana, criadora da Saudade, a Virgem do Desejo e da Lembrança, nascida do casamento do Paganismo com o Cristianismo.
Os seus versos são feitos de luz do sol e de lágrimas, de terra e céu, de beijos e de preces, de sombras e claridades. É a poesia religiosa da Raça o primeiro sinal do seu renascimento. Quando a alma de um Povo está para criar uma nova primavera espiritual, a Poesia é a primeira flor que aparece.
Mas este religioso sentimento lusitano já se tornou consciência e sabedoria e filosofia nesse poderosíssimo cérebro de Leonardo Coimbra. O seu livro intitulado O Criacionismo demonstra isto admiravelmente. Basta lê-lo com inteligência e amor. Escusado insistir no que esta obra representa para a desejada civilização portuguesa. Outras tendências há na actual poesia portuguesa; mas eu não posso concordar com elas porque são estrangeiras para a nossa alma. Últimos vestígios do estrangeirismo que caracterizou o período da decadência.
Quanto ao Romance, conheço, pelo menos, alguns seus representantes de grande merecimento: Raúl Brandão, Antero de Figueiredo, Vila Moura, António Patrício, Malheiro Dias, Sousa Costa, Veiga Simões, João Grave e Justino de Montalvão. Os nossos prosadores sãoa dmiráveis artistas, mas precisam de criar um alto pensamento lusitano que organize e oriente a sua obra.
Quanto ao Teatro... imagino que, depois de Gil Vicente e Garrett, é coisa que não existe em Portugal. O português é muito espontâneo e sincero. A sua arte dá-se imediatamente ao leitor, sem intérpretes; e, quando tenta adaptar-se à representação e ao cenário artificial, desfalece e vulgariza-se. Além disso, o português vive pouco dentro da alma humana; a sua vida dispersa-se pela natureza, a sua dor é mais feita das lágrimas das coisas, recebe-a mais do exterior que dos íntimos sobressaltos do espírito.
A Espanha é a terra natal do Drama. Portugal a terra natal da Elegia, esse drama feito nuvem. A elegia é divina e voa para as estrelas; o drama é humano e desce aos abismos sepulcrais. A elegia é o próprio olhar da saudade, isto é, do nosso espírito que se lembra do céu de onde veio, e por isso, deseja regressar à pátria natal. A elegia é a forma divina do Lirismo Português, é a nossa alma religiosa envolta em luar de morte e crepúsculos de ante-manhãs de vida...O drama é o olhar dos homens, afogado em lágrimas, enevoado de torvos desesperos; é a vida animal contrariada pela própria dolorosa contingência. A terra de Portugal é elegíaca e divina e, portanto, eternamente hostil à terra espanhola.

[1] Ibidem, pp. 28-32.




Teixeira de Pascoaes - "A Renascença Portuguesa e um Inquérito Literário". In O Mundo. Lisboa, Ano 13, n.º 4334 (30 Set. 1912), p. 2.







O sr. Júlio Brandão

Diz não ver correntes literárias que
não se tenham há muito observado

Ao contrário do que toda a gente se tem permitido manifestar, nós não procuramos somente os críticos, nem exclusivamente os literatos, para esclarecer a situação da literatura portuguesa contemporânea.
São novos e velhos, críticos e não críticos, prosadores, poetas, dramaturgos, romancistas, etc., etc., que vêm dizer de si e do que através das suas especialidades eles vêm na república das letras.
Só assim se conseguirá esclarecer o assunto.
O sr. Júlio Brandão, que é um literato por demais conhecido no nosso meio, foi justamente chamado a depor neste inquérito.
A interessante carta que nos enviou põe-nos diante dos olhos mais uma nova fase do prisma que todos andamos a espreitar amorosamente, desde o começo da publicação deste inquérito. Ei-la:



Meu prezado colega: só hoje me é possível responder ao seu amável convite, em globo, e muito atabalhoadamente. Perdoe-me!
Parece-me que a nossa literatura continua a ser acentuadamente subjectiva e lírica; nós somos um povo de poetas, meu amigo, e de poetas amorosas. Somos capazes de todos os heroísmos – tendo uma estrela a alumiar-nos.
À parte certas alterações formais, na essência não vejo nada de novo, nas diversas manifestações literárias. Não observo correntes, que se não tivessem há muito observado.
A poesia moderna tem, na realidade, cultores notáveis; é variada e rica – precisamente porque cada um, dos bons, bebe pelo seu copo. Não vejo que se tenha criado nenhuma nova poesia; vejo poetas diferentes, cada um com o seu temperamento e a sua arte. E como a nossa poesia é lírica, os poetas sinceros, arrancando os seus poemas da sua mais profunda sensibilidade, têm de ser pessoais e portugueses...
E veja: os romancistas que melhor exprimiram o sentir português foram Júlio Dinis e Camilo; e as novelas que têm alcançado êxito são as que se entretecem de aventura apaixonada, ou que vibram de lirismo, de elegia, de piedade.
O nosso mais notável novelista moderna é, para mim, D. João de Castro; creio até que será o nosso único novelista actual; os outros, e alguns de talento, são romancistas.
A diferença, para mim, de novela e romance é a que existe entre os processos de Camilo e de Eça de Queirós, para não sair de Portugal.
Quer dizer de teatro? Parece-me evidentemente em decadência. Guerra Junqueiro, quando frisou a diferença entre o povo espanhol, intensamente dramático, e o português, vascularmente elegíaco, indicou naturalmente a razão porque o nosso teatro tem apenas lampejos efémeros. A última revivescência foi-lhe dada, triunfalmente, por Henrique Lopes de Mendonça. O Duque de Viseu marca época no teatro português.
Além deste escritor insigne, e não falando nos deliciosos idílios de D. João da Câmara, tão nossos Júlio Dantas, Marcelino Mesquita e Afonso Lopes Vieira hão-de continuar a enriquecer a nossa literatura dramática.
... Mas, afinal, quando serão proibidos os cinematógrafos?
Deixei de propósito para último lugar o caso do renascimento literário entre nós – e quem o representa. Era o ponto burlesco.
É certo que existe uma taboleta «Renascença», com uma revista pendurada; mas tudo isso me parece uma patuscada de vaudeville. Não quer isto dizer que não colaborem nesse grupo homens de real talento; mas que fazem eles renascer? Não, a Renascença é uma filarmónica, ou melhor, uma cooperativa em que o sócio-gerente, o impagável Pascoaes, entrelaça na fonte de Ária e de Semita os loiros do maior génio europeu contemporâneo. Ele afirma-o, e a rapaziada mais nova acredita-o sob a palavra de honra de Pascoaes.
Um movimento dirigido por ele – «para orientar as classes mais cultas» – é uma coisa imprevista de audácia e de estupidez. As classes mais cultas! O sr. Pascoaes é uma bexiga de porco, a rebentar de vaidade – e afectando modéstia, bondade, ternura ariana. Na essência é um tartufo. É um Budasinho que usasse navalha de ponta e mola. De uma ignorância e de uma abundância poética flitiva. É ver as baboseiras que escreve, em prosa de colegial; é ver as suas notas de crítica – em que, nas entrelinhas pelo menos, ele é sempre o Supremo Génio, o mais profundo filósofo contemporâneo.
Os versos deste ária misturado de semita são de uma arte pobríssima, sem o menor equilíbrio estético – aqui e ali com trechos líricos felizes, mas que ele embrulha em longas tiradas do Rosalino Cândido. E sempre o mesmo Saudosismo – que não é o de Garrett, porque Garrett é um asno, mas é o da Raça, do ária e do semita, que deu a Virgem Maria e Vénus, o cristianismo e o paganismo. O que ele sabe de raças! Faz vertigens!
Além disso, Pascoaes, de vez em quando, diz ao orbe estupefacto o que se salvará no oceano das idades, das letras portuguesas. Quer saber? São dois sonetos de Antero; o episódio do Adamastor; uma das cartas de Soror Mariana; a oração à Luz, de Junqueiro, e pouco mais, à parte a obra dele, Pascoaes, que o digno homem está a refundir em Amarante, para lhe arrancar tudo que não seja dos árias ou dos semitas, da raça portuguesa... Que lhe parece o pândego?...
Aquela Oração à Luz é, de resto, uma generosidade do ária. É claro que Pascoaes, desde os tempos do franquismo, que tãoa rdentemente amou, não simpatiza com o grande Poeta; mas, desde que Pascoaes apareceu republicano... histórico, quis ser mãos largas com o autor da Pátria: aplaude-lhe a Oração à Luz: corre a salvá-la!
Mas porque é que os Simples se não podem integrar nos árias? Não, não! Pascoaes não permite. Mas porque é que João de Deus é sempre maltratado, o divino poeta, nas baboseiras vergonhosas que bolsa o sr. Pascoaes? Mas porque é que os poetas novos do talento de Manuel da Silva Gaio, de Eugénio de Castro, de João de Barros, de Augusto Gil, de Guedes Teixeira, não falando em mim, é claro, que sou réprobo, em muitos outros anteriores, e em vários rapazes que se têm revelado brilhantemente, não podem ser descendentes dos Árias e dos Semitas? É que o sr. Pascoaes não gostam que lhe chamem mistificador; não lhe convém que, assim como gritaram ao velho rei no conto de Andersen, « que ele ia nú», que digam também, entre um coro de aplausos ingénuos ou inconscientes, que o sr. Pascoaes é um subalterno a armar ao efeito – ou um caso de manicómio. Não quer que lhe rebentem a bexiga de porco.
Terminando: a Renascença não existe; existe a Águia. É claro que serão sempre belas as coisas belas que lá forem escritas – que servem para amparar no seu trono de papelão, por pouco tempo, o pateta de revista de ano que a dirige.
E sabem quem são, entre outros, os criadores da Renascença? Os srs. Carlos de Oliveira, Augusto Santa Rita, Afonso Mota Guedes.
João de Deus e Garrett nada representam na raça. Representam aqueles!
Bom, já escrevemos demais – e convém esperar um pouco, visto que o homem está a rever a sua Obra – a maior da Europa.
Porque aquilo de chamar a Junqueiro e a Gomes Leal poetas europeus, leva água no bico... Seria até um caso de psicologia que eu desfiaria gora, e que seria divertidíssimo.
Mas já tenho abusado, não é verdade?









Júlio Brandão - "Polémica Literária". In O Mundo. Lisboa, Ano 13, n.º 4356 (23 Out. 1912), p. 3.
















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