terça-feira, 14 de junho de 2011

camilo e a literatura



Anátema. Pref., sel. e notas de Alexandre Cabral. Lisboa: Círculo de Leitores, 1981



“Não queremos enviesar apontoados de palavras eufónicas ao avelhado véu de mistérios com que por aí se enroupa o romance chamado da época. Filho legítimo da literatura palpitante de actualidade chamam-lhe uns: outros dizem que não é nada, ou por muito favor – uma ginástica de contorções dificultosas de estilo, opulenta de pontinhos, e ahs! E ohs!
Não subscrevemos a alguma das opiniões.
A primeira é um revoltante empirismo da ciência, pavoneando-se como o arlequim cintilante de lantejoulas. Tem de seu uma prodigiosa colecção de palavras elásticas até o infinito das reticências. O que escreve, magnetiza a inteligência do que lê, e manda-o adivinhar. Os temperamentos de nervoso afinadíssimo, à custa de grandes cargas de electricidade, vergam ao sonambulismo, e dormem com meia página do Judeu Errante no meio. A literatura, que palpita, está para a literatura que não palpita como menino de colégio, todo vibrante de viveza, que vem no sábado a casa perguntar ao bom pai:
- Mon père! Comment se port-t-il, bien?
O pai que é português, como uma página de frei bernardo de Brito, responde:
- Estou bem, louvado seja Deus.
Depois, o traquinas esperto e inquieto, cansado das carícias do pai, diz-lhe assim com uma indolência apaixonada:
- Je suis fâché... Je m`en vais jouer la cavatine en Torquate Tasse.
O pai aventura uma pergunta:
- Quem foi esse Torquato Tasso?
- Torquato Tasso... foi um poeta de aspirações etéreas, rico de estilo luxuriante, vivido de paixões ardidas e incisivas, estro inspirado do grandioso da arte, fadado para os séculos como o pregão de uma luta que se há travado no primitivo das crenças...
- Muito bem – interrompeu o pai. – Donde era Tasso, em que anos floresceu, e qual dos cantos do seu poema é o mais importante?
O palpitante menino (que já tinha escrito prosa em bíblico, e versos a uma mariposa) pede uma resposta à reminiscência, e esta dá-lhe o que pode: um trecho de uma revista semanal, em que o escritor analisando a ópera Torquato Tasso, escrevera assim: Da harmonia ressalta o pensamento: o pensamento, vibrado pelo impulso místico da arte, é como a harpa íntima de Tasso a modular tristezas. A dor e o rondó! A cavatina e o pranto! A demência e o alegro! A alma que se rasga, e a harmonia que se quebra, rápida e improvisa como o expirar do fulminado!...”
Estas palavras bem as decorara o colegial; mas isto, que muito vale não era resposta para um velho biógrafo, cronológico, e, diga-se o que é, sem palpitações de
actualidade!” (Introdução, 45-46)


“Se o estilo é o homem, como dizem os que sabem, não nos desaprovem este recurso de emparelhar o saber dos velhos com o dos novos.
Segunda opinião:
Dizem que o escrever de hoje é dessorado de erudição, leviano, vaporoso, ginástico, estridente, cabalístico, bafagem de brisa, balão aerostático, fogo chinês, vicejante, ondulante, estrepitoso e abismador!
Não é tudo assim.
Popularizada a literatura, era necessário despojá-la das alfaias graves e sinceras da ciência, trazê-la da profundeza da erudição à superfície das inteligências vulgares, e vesti-la do maravilhoso surpreendedor, já que o lógico verosímil é repelido da biblioteca da burguesa e do artista. Para captar a benevolência da leitora, precisava-se da história de uns amores trágicos, urgentes, e lamentosos. Para a do artista, cumpria ampliar-lhe a órbita do espírito apoucado, e humanitária da arte. O estilo devia ser exagerado como o pensamento: quimérico, híbrido, e mentiroso como todas as teorias, criadas no caos de todas as práticas.
Trabalho exclusivamente do coração, artimanha política, método civilizador, era aquele o único adaptado para cabeças sem cultura, sem sistema, prenhes de utopias e fumos de socialismo, como ele se escreve em jornais e romances. Criou-se, pois, uma escola militante. E o povo aplaude esses estereótipos baratos consagrados ao povo, entenda ou não entenda o que lê, possa ou não possa digerir o que entende.” (Introdução, 46-47)

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