quinta-feira, 9 de abril de 2009

José Saramago, pensamentos


A Bagagem do Viajante
“Entendo que cada um de nós é, acima de tudo, filho das suas obras, daquilo que vai fazendo durante o tempo que cá anda.” (11)

“Ser filho de alguém bastante conhecido para que não fiquem em branco as linhas do cartão de identidade, é como vir ao mundo carimbado e com salvo-conduto.” (11)

“Um dia tinha de chegar em que contaria esta coisas.” (13)

“(...) ofício de viver, que não parece sequer requerer aprendizagem.” (15)

“(...) o mundo será de facto transformado mas não por nós.” (15)

“(...) não seremos todos nós transformadores do mundo?” (16)

“Tinha oito anos e já sabia ler muito bem. Escrever, não tanto, mas fazia poucos erros para a idade, só a caligrafia era má, e assim veio a ficar sempre. Escrevia naqueles antigos cadernos de formosas letras desenhadas, e repetia-as com milagres de atenção, mas no fim da linha já começava a inventar um alfabeto novo, que nunca cheguei a organizar completamente. Mas lia muito bem os jornais e sabia tudo quanto se passava no mundo. Julgava eu que era tudo.
Também tinha livros: havia um guia de conversação de português-francês, que ali fora parar não sei como, e cujas páginas, divididas em três partes, eram para mim um enigma que apenas parcialmente decifrava, pois tinha à esquerda uma coluna que eu podia entender, em português, depois outra em francês, que era como chinês, e finalmente a pronúncia figurada, muito pior do que todos os criptogramas do mundo. Havia outro livro, um só, muito grande, encadernado de azul, que eu pousava largamente em cima dos joelhos para poder lê-lo, e no qual se narravam as aventuras românticas duma menina pobre que vivia num moinho e que era tão bela que lhe chamavam A Toutinegra do Moinho: o autor, se a memória não me engana, era um Émile de Richebourg, homem das Arábias para histórias de chorar. E o livro, quando não estava em uso, passava o tempo numa gaveta da cómoda, embrulhado em papel de seda, e largava, ao ser retirado, um cheiro de naftalina que provocava tonturas. Minha mãe entregava-mo com unção e mil recomendações. Talvez venha daí o respeito supersticioso que ainda hoje tenho pelos livros: não suporto que os dobrem, os risquem, os maltratem na minha frente.
Durante muito tempo (dias? Semanas? Meses? Que tamanho tem o tempo na infância?) me intrigou o guia de conversação. Lia nele coisas que me agradavam, que me divertiam: casos passados em caminhos-de-ferro e diligências, cavalos cansados, bagagens perdidas, rodas que se quebravam em sítios descampados, chagadas a estalagens, quartos que era preciso aquecer com grandes fogos de lenha. Apesar de não encontrar casos destes entre a casa e a escola, eu achava que devia ser bom viver assim, com tantos imprevistos da fortuna.
Mas o que mais me fascinava eram uns diálogos às vezes compassados e solenes, outras vezes vivos e rápidos como o reflexo do sol varrido por uma janela que se fecha. Quando tal acontecia, punha-me a sorrir de uma certa maneira que só agora entendo: sorria como o adulto que ainda estava longe. Foi muitos anos depois que descobri que afinal já conhecia Molière desde a água-furtada: conversara comigo, fora meu guia de leitura, enquanto a Toutinegra dormia divorciada entre dois lençóis, na gaveta da cómoda, com cheiro a naftalina e a tempo não de todo perdido.” (20-21)

“O mito do paraíso perdido é o da infância – não há outro. O mais são realidades a conquistar, sonhadas no presente, guardadas no futuro inalcançavel. E sem elas não sei o que faríamos hoje- Eu não o sei.” (23)

“(...) o desprezo pelo próximo, quando não o ódio, tão constantes alic como aqui mesmo, em toda a parte, uma espécie de loucura epidérmica que prefere as vítimas fáceis.” (37)

“Ah, esta vida preciosa que vai fugindo, tarde mansa que não será igual amanhã, que não serás, sobretudo, o que agora és.” (37)

“A vida vai voltar ao princípio. Será possível que a vida volte ao princípio?” (37)

“(...) ironia (...) Provavelmente é ela a única porta de saída que me resta, a alternativa da veemência com que eu teria de interpelar não sei quem, não sei onde, por esta obstinação de vistas curtas, por esta falta de capacidade de criar pela nova (...)” (52)

“Ao contrário do que afirmam os ingénuos (todos o somos uma vez por outra), não basta dizer a verdade. De pouco ela servirá ao trato das pessoas se não for crível, e talvez até devesse ser essa a sua primeira qualidade. A verdade é apenas meio caminho, a outra metade chama-se credibilidade. Por isso há mentiras que passam por verdades, e verdades que são tidas por mentiras.” (55)

“Conhecemos sempre muito mais dos outros quando já nos passaram pela porta ilusões parecidas.” (75)

“Escrever é obra doutra perfeição (...)” (76)

“(...) o passado está cheio de vozes que não se calam e ao lado da minha sombra há uma multidão infinita de quantos a justificam.” (84)

“Pois vá o barco à água, que o remo logo se arranjará” (95

“Estas coisas também são assim, e no fundo ninguém nos quer mal, a culpa é do tempo que passa, e quando eu morrer as pessoas também vão ter muita pena. A ver.” (104)

“Um delgado fio é a fronteira, e parte-se, e gasta-se, e é logo outro mundo.
Quero eu dizer na minha que estas crónicas são também os dizeres de um fala-só. Que esta continuada comunicação tem qualquer coisa de insensato, porque é uma voz cega lançada para um espaço imenso onde outras vozes monologam, e tudo é abafado por um silêncio espesso e mole que nos rodeia e faz de cada um de nós uma ilha de angústia.” (104)

“Afinal nada é simples. Uma frase numa página de jornal, meia dúzia de palavras insignificantes, impessoais – e vai-se a ver, há nelas motivo de sobra para reflexão. Só me falta recomendar ao leitor que aplique o método no seu dia-a-dia: pegue nas palavras, pese-as., meça-as, veja a maneira como se ligam, o que exprimem, decifre o arzinho velhaco com que dizem uma coisa por outra e venha-me cá dizer se não se sente melhor depois de as ter esfolado.” (109)

“De mais sei eu que a confiança é, em muitos casos, a armadilha que a nós próprios armamos, e para ela é que os outros nos empurram, sorrindo.” (120)

“Um mundo de coisas, se eu estivesse em disposição de escolher uma, encontrar-lhe o jeito, surpreendê-la a olhar para outro lado e caçar-lhe o perfil secreto – que é, afinal, em que se resume a arte de escrever.” (120)

“Mas agora quereria que descesse um pouco mais no fundo e fizesse comigo a descoberta do que representa, para quem escreve, a pública exibição do que sente e do que pensa, do que projecta e do que realizou antes, ou falhou. Sobretudo, o cronista, porque faz da matéria da vida (da sua e da alheia, deste mundo e do outro) a ponte de comunicação e a própria comunicação, acho eu que a muito se atreve e arrisca. Não pode ser um reflexo indiferente, um arranjador de notícias que mesmo quando relatam catástrofes têm sempre alguma coisa de impessoal e distante. Há-de afirmar-se em cada palavra que escreva, de tal maneira que à terceira linha se acabaram os segredos e o leitor não tem mais remédio que uma destas atitudes: ou senta o cronista à sua mesa, como faz aos amigos, ou fecha-lhe a porta na cara, como aos importunos, deixando-o a arranhar desanimadamente a bandurra.” (120-121)

“Saberei que malhas e nós tecem uma existência que não é a minha, esta que aqui ando a contar, e uma vez mais descobrirei, sempre com o mesmo espanto, que todas as vidas são extraordinárias, que todas são uma bela e terrível história.” (121)

“Quem escreve, penso eu que o faz como no interior de um cubo imenso, onde nada mais existe que uma folha de papel e a palpitação de duas mãos, rápidas, hesitantes, asas violentas que de súbito descaem para o lado, cortadas do corpo. Quem escreve tem à sua volta um deserto que parece infinito, reino cuidadosamente despovoado para que só fique a imagem surreal de um capo aberto, de uma mesa de escriturário à sombra da árvore inventada, e um perfil esquinado que tudo faz para assemelhar-se ao homem. Quem escreve, penso eu que procura ocultar um defeito, um vício, uma tara aos seus próprios olhos indecente. Quem escreve, está traindo alguém.” (143)

“Não tenho nenhuma história para contar. Sinto-me cansado de histórias como se subitamente tivesse descoberto que todas foram contadas no dia em que o homem foi capaz de dizer a primeira palavra, se é que houve realmente uma primeira palavra, se é que as palavras não são todas elas, cada uma e em cada momento, a primeira palavra. Então tornarão a ser precisas as histórias, então teremos de reconhecer que nenhuma foi contada ainda.” (144)

“Para lá do risco que separa as areias e o céu, tão longe que sentado as não vejo, andam as pessoas que vão ler as palavras que escrevo, que as vão desprezar ou entender, que as guardarão na memória pelo tempo que a memória consentir e que depois as esquecerão, como se fossem apenas o boquejar sufocado de um peixe fora de água.” (144)

“Também é bom fazer perguntas quando se sabe que não irão ter resposta. Porque depois delas se podem acrescentar outras, tão ciosas como as primeiras, tão impertinentes, tão capazes de consolação no retorno do silêncio que as vai receber.” (145)

“Então se tornarão a contar as histórias que hoje dizemos impossíveis. E tudo (talvez sim, talvez sim), começará a ser explicado e entendido. Como a primeira palavra.” (145)

“(...) sei o que significa este tremor das mãos no virar das páginas: o segredo está em qualquer parte, debaixo dos dedos, numa entrelinha que se esconde.” (152)

“(...) fez o seu devir de obra de arte: ser e agir.” (159)

“(...) talvez a franqueza de cada um de nós não seja irremediável. Avida está aí à nossa espera, quem sabe se para tirar a prova real do que valemos. Saberemos alguma vez quem somos?” (161)

“(...) mais recordo o tempo das palavras de um sentido só (...)” (172)

“(...) um mundo que julgávamos tão pequeno e que, afinal, tem o seu tamanho multiplicado pelo número infinito de instantes que formam, juntos, o tempo do mundo.” (177)

“Claro que não estou a pensar em cultivar-se um tipo de devoção historicista toda voltada para o passado, para os «bons tempos» em que fomos senhores do mundo ou, mais modestamente, do nosso caminho. Tratar-se-ia, antes, de desenredar esse caminho do amontoado do tempo e dos acontecimentos, de modo a encontrarmo-nos, como povo, conscientes, agora sim, de um tempo histórico vivido e assumido, perante a nova sociedade (e quem sabe se a nova civilização) que em todo o mundo se forma, entre os sobressaltos e os estertores do que ainda não há muito tempo parecia tão sólido, tão para durar.” (188)

“(...) o simples cronista que eu sou se deverá dar por satisfeito com aflorar ao de leve as interrogações mais próximas. É o seu modo de estar presente, de intervir, de exprimir a sua cidadania, de querer bem ao país onde nasceu, de amar o povo a que pertence.” (189)

“Se ao cronista compete ser registador do tempo, o seu particular e aquele em que mais alargadamente vive...” (195)

“(...) o silêncio, que é sempre a fascinação de quem escreve, mas a que só raríssimos tiveram a coragem de abrir as portas da sua casa.” (195)

“No fundo, sou um bom sujeito, com uma só confessada fraqueza de má vizinhança: a ironia. Ainda assim, procuro trocar-lhe as voltas e trato de trazê-la (as aliterações dos nossos trisavós estão outra vez na moda) para que a vida não se me torne em demasia desconfortável. Mas devo confessar que ela me vale como receita de bom médico sempre que a outra porta de saída teria de ser a indignação. Às vezes o impudor é tanto, tão maltratada a verdade, tão ridicularizada a justiça, que se não troço, estoiro de justíssimo furor.” (207)

“No meu modesto entendimento, não há nada melhor que caminhar e circular, abrir os olhos e deixar que as imagens nos atravessem como o sol faz à vidraça. Disponhamos dentro de nós o filtro adequado (a sensibilidade acordada, a cultura possível) e mais tarde encontraremos, em estado de inesperada pureza, a maravilhosa cintilação da memória enriquecida.” (211)

“(...) a providência dos cronistas, a qual é (aqui o confesso) a associação de ideias.” (221)

“Falamos destas coisas gravemente, divididos entre o que só a nós pertence e aquilo em que apenas com um respeito infinito podemos tocar.” (228)

“Se passo as minhas lembranças ao papel, é mais para que não se percam (em mim) minutos de ouro, horas que resplandecem como sóis no céu tumultuoso e imenso que é a memória. Coisas que são também, com o mais, a minha vida.” (231)

“O trabalho da memória é conservar estas prodigiosas coisas, defendê-las do desgaste banalíssimo do quotidiano, ciosamente, porque talvez não tenhamos outra melhor riqueza.” (232)

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