sábado, 27 de fevereiro de 2010

ideias soltas

Começou já na semana passada a primeira edição e-learning do curso "Meio Século de Literatura Portuguesa (1880-1930)" promovido pelo Instituto Camões. , aliando-se esta instituição desta forma à Comissão Nacional para as Comemorações do Centenário da República. Aliás, comentário à margem, quem deveria frequentar este curso eram os senhores(as) que organizaram a exposição "Resistência", na qual, e sendo um dos propósitos da comissão da referida exposição, a divulgação daqueles que resistiram "pela liberdade intelectual, artística, literária, científica e académica,, conforme se pode ler no catálogo da mesma, até porque na referida exposição este mesmo propósito é nulo (já aqui comentei a exposição e o ´seu catálogo). Mas voltando ao curso em questão, o seu tutor é o prof. Dr. José Carlos Seabra Pereira, o qual já colaborou com a autarquia famalicense nas suas actividades culturais. Tendo em conta o 1.º módulo, deixo aqui algumas reflexões singulares e algumas notas soltas para discussão.


Assim sendo, vou a uma das minhas estantes, nomeadamente à bancada de Filosofia, das ideias e das mentalidades e pego num livro que ao longo do tempo me tem seguido, não só por ter aplicado as suas ideias aos estudos literários famalicenses, para estes serem colocados num plano global, mas igualmente pela aliciante e fascinante leitura que sempre me cativou: falo, claro, do livro de António José Saraiva que se chama "A Tertúlia Ocidental".

Ao folheá-lo, surgiram-me alguns sublinhados e deparei-me com um fragmento de uma carta de Antero de Quental a Teófilo Braga. Nesse mesmo fragmento podemos ler o conteúdo programático e estrutural da Geração de 70. Cito:


"Temos um programa mas não uma doutrina; somos uma associação mas não uma igreja; isto é, liga-nos um comum espírito de racionalismo, de humanização positiva das questões morais, de independência de vistas, mas de modo nenhum impomos uns aos outros opiniões e ideias, fora do âmbito tão largamente marcado à nossa unidade por este comum ponto de vista. Seremos, em religião, pelo sentimento criador do coração humano contra os mitos doutrinais das teologias. Seremos em política, pelo governo do povo pelo povo; em sociologia pela emancipação do trabalho; em literatura e arte pelo fim social e civilizador da arte e da literatura, combatendo as tendências egoístas esterilizadoras que hoje predominam."


Não deixa de ser curioso como Antero reflecte o espírito do seu tempo: "as tendências egoístas esterilizadoras". A sociedade contemporânea vive sobre esse mesmo efeito. O que falta é, acima de tudo, uma identidade e uma ética de convergência. O que agora se diz, daqui a um minuto fica sem sentido, deturpado.

Mas ao lado deste grupo, o da geração de 70, surge, paralelamente, um outro, "Os Vencidos da Vida!" Para além daquele conteúdo programático evocado por Antero, o grupo, senão mesmo ambos, desenvolvem-se num contexto geográfico amplo, não se limitando a uma localidade, mas sim, conforme nos diz Saraiva, radicalizando-se ora em Coimbra, em Lisboa, ou mesmo no Porto. Mas fora deste contexto geográfico, e para além dele, e das personalidades que os envolviam, o que os unia era o seguinte (para além de identificar ambos os grupos) segundo Artur Sá da Costa. Cito:


"Somos tentados a pensar que esta geração (de Camilo, Martins Sarmento, José e Alberto Sampaio, Bernardino Machado) - afinal, também ela parte integrante do núcleo inicial da "Geração de 70" com os irmãos Sampaio e mais tarde Bernardo Pindela (o Conde de Arnoso, secretário do Rei D. Carlos, da Casa de Pindela, com Eça e tantos outros, envolvidos, no mperíodo final daquele movimento cultural e cívico, o dos "Vencidos da Vida") - encontrou-se e expressou o seu talento e afectividade no vale, que serve de leito ao rio Ave, que abraça e une as cidades de Guimarães e Vila Nova de Famalicão [...]



Tal como a "Geração de 70", esta tertúlia do Ave, das décadas de 70/90, do século XIX, tem uma indiscutível qualidade intelectual e um sentido cívico elevado, relacionando-se e convivendo fraternalmente, mantendo uma cooperação intelectual exemplar. / É uma relação singular e incomum. São amigos para conviver, para confidenciar, como para discordar, entreajudando-se, partilhando sem egoísmos o saber para descobrir e compreender. E para sempre. E, estranhamente curioso, sem perda da sua individualidade, não disputam fronteiras físicas, nem esgrimem bairrismos serôdios. O seu horizonte é o país e o universo da humanidade. Une-os o desejo de os compreender e descobrir as origens da terra que habitam, e encontrar caminhos que rompem com o atraso secular do seu país, em busca de um destino colectivo."



Neste sentido, só mais uma pequena reflexão à volta do grupo "Os Vencidos da Vida" e da "Revista de Portugal". Saraiva considera até que esta revista pode ser considerada como o órgão do grupo, na difusão das suas ideias. Contudo, o que já questionei é que se não terá havido aqui um certo exagero da sua parte. Cito o que já escrevi num texto publicado em 2006:
"Não duvidamos que até poderia ter sido e desempenhado o papel enquanto órgão oficial do movimento; e se encararmos algumas figuras famalicenses que na própria revista chegaram a colaborar, uma de ordem natural, caso de Júlio Brandão, outras de ordem afectiva e efectiva, caso de Bernardo Pindela, Alberto Sampaio e Álvaro de Castelões, não nos parece que a revista tenha sido um movimento estético-cultural ou mesmo ideológico"
Como digo de seguida, citando uma carta de Eça de Queirós a Bernardo Pindela, a "Revista de Portugal" foi mais um reportório textual de que propriamente uma identidade configuradora.
Bibliografia
Amadeu Gonçalves - "Literatura & Imprensa: do local ao global". In Boletim Cultural. V. N. de Famalicão, n.º 2, 3.ª série ((2006), pp. 121-144.
António José Saraiva - A Tertúlia Ocidental: estudos sobre Antero de Quental, Oliveira Martins, Eça de Queiros e outros. Lisboa: Gradiva; Público, 1996

Artur Sá da Costa - "A Tertúlia do Ave: Camilo, Martins Sarmento, Alberto Sampaio, Bernardino Machado e amigos". In Boletim Cultural. V. N. de Famalicão, n.º 3/4, 3.ª série (2007/8), pp. 441-492.


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