quarta-feira, 29 de junho de 2011

da esperança política



"Este livro trata de contribuir para uma nova teoria do tempo social num dos seus aspectos mais relevantes - como se realciona a sociedade com o seu futuro, comos e antecipa, comos e decide e configura - extraindo desta perspectiva uma série de lições que podem ajudar a uma renovação do nosso modo de entender e levar a cabo a política. A crítica do uso que as sociedades fazem do tempo futuro é uma chave para desenvolver uma reoria crítica da sociedade. Toda a teoria da sociedade deve ser hoje uma teoria do tempo e, especialmente, do emprego que fazemos do futuro. E é que a crise da política tem muito a ver com uma crise do futuro e da sua crescente ilegibilidade. A transformação que as sociedade democráticas necessitam será a de considerar o futuro como o seu espaço mais interessante de acção, se acertamos agora de estabelecer os procedimentos para nos libertar da tirania do curto prazo e abrir-mo-nos até ao horizonte mais ambicioso da longue durée. Essa era a tarefa que Max Weber assinava à política: gerir o futuro e responsabilizar-se por ele."


Daniel Innerarity




I

O Futuro das sociedades democráticas. Uma teoria da justiça intergeracional


II

A paisagem temporal da sociedade contemporânea. Uma teoria da aceleração


III

Como se conhece o futuro? Uma teoria de prospectiva


IV

Como se decide o futuro? Uma teoria da decisão


V

Quem se encarrega do futuro? Uma teoria da responsabilidade


VI

Cronopolítica. Uma teoria dos ritmos sociais


VII

A política numa sociedade pos-histórica. Uma teoria da contingência política


VIII

A construção política da esperança colectiva





segunda-feira, 27 de junho de 2011

revisitar uma polémica literária teixeira de pascoaes e júlio brandão em 1912



"Passada a euforia nefelibata, [Júlio] Brandão irá cultivar uma estética romântica, sentimental e folclorizante, sendo precisamente tal características que irá induzir o nosso autor no afastamento da literatura portuguesa, imbuíndo Brandão, na sua caminhada de publicista, para um espírito lusitanista, voitalista e saudosista. Melhor explicando, Brandão ao revalorizar e ao memorializar o simbolismo e o nefelibatismo nota-se uma espécie de individualismo mítico, até porque a memorialização do seu tempo inicial de escritor / poeta revela que não está particularmente interessado com as mutações do seu momento presente histórico [...] Será, então, a partir deste momento que se nota de facto um afastamento do nosso autor relativamente à evolução estético-literária da cultura portuguesa..., passando pela Renaswcença Portuguesa, apesar de ter colaborado no seu órgão oficial "A Águia", assim como na sua antecedente "A Rajada", pelo modernismo e "Orfeu" até ao movimento dos seareiros e até mesmo pelos presencistas. Daqui o seu conflito pessoal, jamais literário, com Teixeira de Pascoaes, este de maior valia literária." (135-136).


Amadeu Gonçalves - "Literatura & Imprensa: do local ao global". In Boletim Cultural. V. N. de Famalicão, 3.ª série, n.º 2 (2006), pp. 121-144.




Amadeu Gonçalves - "Júlio Brandão e Teixeira de Pascoaes". In Opinião Pública. V. N. de Famalicão, Ano 1, n.º 26 (5 Fev. 1991), p. 12.



Participa Júlio Brandão no Inquérito Literário promovido por Boavida Portugal e inicia a sua polémica com Teixeira de Pascoaes.

INQUÉRITO LITERÁRIO.
Inquérito literário. Org. Boavida Portugal. Lisboa: Livraria Clássica Editora, 1915.
«O Snr Julio Brandão diz não vêr correntes literárias que não se tenham há muito observado», pp. 94-99. (1)

Passa-se isto em 1912. Um redactor do jornal República promove um inquérito à vida literária portuguesa e consulta os nossos intelectuais mais representativos, desde Júlio de Matos e Gomes Leal até a jovens como Vila Moura e Augusto de Castro. Boavida Portugal, o autor da iniciativa, não lhe avaliando as consequências, desencadeia uma torrente caudalosa de réplicas e comentários de quanto escritor se achou molestado na suas obras pelos inquiridos. A lista dos esclarecimentos e queixas é imensa![1]


[1] António Manuel Couto Viana – “Júlio Brandão”. In As (e)vocações literárias: estudos & memórias. Lisboa: [s. n.], 1980, pp. 176-180.







O sr. dr. Teixeira de Pascoaes[1]

Diz que a poesia religiosa da Raça é
o primeiro sinal do seu renascimento


Há nomes que naturalmente ocorrem ao debater-se determinado assunto. Assim, num inquérito à vida literária portuguesa, o nome do sr. dr. Teixeira de Pascoaes, não só como poeta, mas, sobretudo, como director da revista-órgão da Renascença Portuguesa A Águia, impunha-se naturalmente.
Depois, como um dos quesitos do inquérito indaga, ainda, da existência e orientação da renascença literária em Portugal, devíamos, naturalmente, ouvir alguém que a representasse oficialmente e ninguém mais competente do que aquele que é considerado chefe dos renascentes.
Foi-nos impossível consultar pessoalmente, acerca deste inquérito, o sr. dr. Teixeira de Pascoaes.
O ilustre autor do Sombras, concordando plenamente connosco, no modo de ver a respeito da responsabilidade dos intelectuais chamados a fazer afirmações perante o seu país, escreveu-nos a seguinte carta:

Meu bom amigo: acerca das perguntas que me faz sobre o movimento literário do país, envio-lhe as seguintes ligeiras e incompletas considerações. Espero que me perdoe o seu nulo valor e falta de interesse crítico, e peço-lhe que tome estas minhas palavras apenas como um desejo de satisfazer o seu amável pedido. O assunto proposto exige demorada atenção e longo trabalho; e isso não me é possível num momento em que o meu espírito anda tão preocupado com outras coisas, entre as quais a revisão e aperfeiçoamento dos meus livros já publicados, cuja próxima segunda edição pertencerá à «Renascença Portuguesa». Direi, de passagem, que o meu pensamento poético desenvolveu-se em mim com tal rapidez que, para não lhe ficar atrás, tive de o exteriorizar em livros escritos à pressa. Compreende-se, portanto, a necessidade de corrigir e aperfeiçoar a minha obra, que já consta de dez volumes compostos e publicados num período de onze anos. Só peço a Deus saúde e tempo para conseguir este maior desejo da minha vida, a única razão da minha vida. O amor que dedico à minha obra não é somente um amor paterno. Amo-a, porque estou convencido de que ela deu ao espírito português alguma coisa que lhe faltava.
Eis o que lhe posso responder à pergunta que me fez acerca do meu papel na literatura contemporânea. E já disse o bastante para ofender a minha repugnância em falar de mim e esse aspecto mais simpático da Caridade – que se chama Modéstia.
Na época actual, pertence à Poesia o lugar mais alto na nossa literatura. Não digo isto por causa da minha pessoa, que pode ser posta de parte sem que se torne sensível a sua falta. Nem quero mesmo referir-me aos dois maiores poetas europeus – Guerra Junqueiro e Gomes Leal.
Basta-me falar de António Correia de Oliveira, Jaime Cortesão, Afonso Lopes Vieira, Mário Beirão, Augusto Casimiro, Afonso Duarte, e, depois destes, dos novíssimos poetas, Carlos de Oliveira, Augusto Santa Rita, Afonso Mota Guedes. Eis uma vasta seara espiritual dadivosa e prometedora dos mais belos frutos. Estes poetas criaram em Portugal uma poesia profundamente portuguesa e original. Eles bebem a sua inspiração no mais íntimo veio religioso da alma lusitana, criadora da Saudade, a Virgem do Desejo e da Lembrança, nascida do casamento do Paganismo com o Cristianismo.
Os seus versos são feitos de luz do sol e de lágrimas, de terra e céu, de beijos e de preces, de sombras e claridades. É a poesia religiosa da Raça o primeiro sinal do seu renascimento. Quando a alma de um Povo está para criar uma nova primavera espiritual, a Poesia é a primeira flor que aparece.
Mas este religioso sentimento lusitano já se tornou consciência e sabedoria e filosofia nesse poderosíssimo cérebro de Leonardo Coimbra. O seu livro intitulado O Criacionismo demonstra isto admiravelmente. Basta lê-lo com inteligência e amor. Escusado insistir no que esta obra representa para a desejada civilização portuguesa. Outras tendências há na actual poesia portuguesa; mas eu não posso concordar com elas porque são estrangeiras para a nossa alma. Últimos vestígios do estrangeirismo que caracterizou o período da decadência.
Quanto ao Romance, conheço, pelo menos, alguns seus representantes de grande merecimento: Raúl Brandão, Antero de Figueiredo, Vila Moura, António Patrício, Malheiro Dias, Sousa Costa, Veiga Simões, João Grave e Justino de Montalvão. Os nossos prosadores sãoa dmiráveis artistas, mas precisam de criar um alto pensamento lusitano que organize e oriente a sua obra.
Quanto ao Teatro... imagino que, depois de Gil Vicente e Garrett, é coisa que não existe em Portugal. O português é muito espontâneo e sincero. A sua arte dá-se imediatamente ao leitor, sem intérpretes; e, quando tenta adaptar-se à representação e ao cenário artificial, desfalece e vulgariza-se. Além disso, o português vive pouco dentro da alma humana; a sua vida dispersa-se pela natureza, a sua dor é mais feita das lágrimas das coisas, recebe-a mais do exterior que dos íntimos sobressaltos do espírito.
A Espanha é a terra natal do Drama. Portugal a terra natal da Elegia, esse drama feito nuvem. A elegia é divina e voa para as estrelas; o drama é humano e desce aos abismos sepulcrais. A elegia é o próprio olhar da saudade, isto é, do nosso espírito que se lembra do céu de onde veio, e por isso, deseja regressar à pátria natal. A elegia é a forma divina do Lirismo Português, é a nossa alma religiosa envolta em luar de morte e crepúsculos de ante-manhãs de vida...O drama é o olhar dos homens, afogado em lágrimas, enevoado de torvos desesperos; é a vida animal contrariada pela própria dolorosa contingência. A terra de Portugal é elegíaca e divina e, portanto, eternamente hostil à terra espanhola.

[1] Ibidem, pp. 28-32.




Teixeira de Pascoaes - "A Renascença Portuguesa e um Inquérito Literário". In O Mundo. Lisboa, Ano 13, n.º 4334 (30 Set. 1912), p. 2.







O sr. Júlio Brandão

Diz não ver correntes literárias que
não se tenham há muito observado

Ao contrário do que toda a gente se tem permitido manifestar, nós não procuramos somente os críticos, nem exclusivamente os literatos, para esclarecer a situação da literatura portuguesa contemporânea.
São novos e velhos, críticos e não críticos, prosadores, poetas, dramaturgos, romancistas, etc., etc., que vêm dizer de si e do que através das suas especialidades eles vêm na república das letras.
Só assim se conseguirá esclarecer o assunto.
O sr. Júlio Brandão, que é um literato por demais conhecido no nosso meio, foi justamente chamado a depor neste inquérito.
A interessante carta que nos enviou põe-nos diante dos olhos mais uma nova fase do prisma que todos andamos a espreitar amorosamente, desde o começo da publicação deste inquérito. Ei-la:



Meu prezado colega: só hoje me é possível responder ao seu amável convite, em globo, e muito atabalhoadamente. Perdoe-me!
Parece-me que a nossa literatura continua a ser acentuadamente subjectiva e lírica; nós somos um povo de poetas, meu amigo, e de poetas amorosas. Somos capazes de todos os heroísmos – tendo uma estrela a alumiar-nos.
À parte certas alterações formais, na essência não vejo nada de novo, nas diversas manifestações literárias. Não observo correntes, que se não tivessem há muito observado.
A poesia moderna tem, na realidade, cultores notáveis; é variada e rica – precisamente porque cada um, dos bons, bebe pelo seu copo. Não vejo que se tenha criado nenhuma nova poesia; vejo poetas diferentes, cada um com o seu temperamento e a sua arte. E como a nossa poesia é lírica, os poetas sinceros, arrancando os seus poemas da sua mais profunda sensibilidade, têm de ser pessoais e portugueses...
E veja: os romancistas que melhor exprimiram o sentir português foram Júlio Dinis e Camilo; e as novelas que têm alcançado êxito são as que se entretecem de aventura apaixonada, ou que vibram de lirismo, de elegia, de piedade.
O nosso mais notável novelista moderna é, para mim, D. João de Castro; creio até que será o nosso único novelista actual; os outros, e alguns de talento, são romancistas.
A diferença, para mim, de novela e romance é a que existe entre os processos de Camilo e de Eça de Queirós, para não sair de Portugal.
Quer dizer de teatro? Parece-me evidentemente em decadência. Guerra Junqueiro, quando frisou a diferença entre o povo espanhol, intensamente dramático, e o português, vascularmente elegíaco, indicou naturalmente a razão porque o nosso teatro tem apenas lampejos efémeros. A última revivescência foi-lhe dada, triunfalmente, por Henrique Lopes de Mendonça. O Duque de Viseu marca época no teatro português.
Além deste escritor insigne, e não falando nos deliciosos idílios de D. João da Câmara, tão nossos Júlio Dantas, Marcelino Mesquita e Afonso Lopes Vieira hão-de continuar a enriquecer a nossa literatura dramática.
... Mas, afinal, quando serão proibidos os cinematógrafos?
Deixei de propósito para último lugar o caso do renascimento literário entre nós – e quem o representa. Era o ponto burlesco.
É certo que existe uma taboleta «Renascença», com uma revista pendurada; mas tudo isso me parece uma patuscada de vaudeville. Não quer isto dizer que não colaborem nesse grupo homens de real talento; mas que fazem eles renascer? Não, a Renascença é uma filarmónica, ou melhor, uma cooperativa em que o sócio-gerente, o impagável Pascoaes, entrelaça na fonte de Ária e de Semita os loiros do maior génio europeu contemporâneo. Ele afirma-o, e a rapaziada mais nova acredita-o sob a palavra de honra de Pascoaes.
Um movimento dirigido por ele – «para orientar as classes mais cultas» – é uma coisa imprevista de audácia e de estupidez. As classes mais cultas! O sr. Pascoaes é uma bexiga de porco, a rebentar de vaidade – e afectando modéstia, bondade, ternura ariana. Na essência é um tartufo. É um Budasinho que usasse navalha de ponta e mola. De uma ignorância e de uma abundância poética flitiva. É ver as baboseiras que escreve, em prosa de colegial; é ver as suas notas de crítica – em que, nas entrelinhas pelo menos, ele é sempre o Supremo Génio, o mais profundo filósofo contemporâneo.
Os versos deste ária misturado de semita são de uma arte pobríssima, sem o menor equilíbrio estético – aqui e ali com trechos líricos felizes, mas que ele embrulha em longas tiradas do Rosalino Cândido. E sempre o mesmo Saudosismo – que não é o de Garrett, porque Garrett é um asno, mas é o da Raça, do ária e do semita, que deu a Virgem Maria e Vénus, o cristianismo e o paganismo. O que ele sabe de raças! Faz vertigens!
Além disso, Pascoaes, de vez em quando, diz ao orbe estupefacto o que se salvará no oceano das idades, das letras portuguesas. Quer saber? São dois sonetos de Antero; o episódio do Adamastor; uma das cartas de Soror Mariana; a oração à Luz, de Junqueiro, e pouco mais, à parte a obra dele, Pascoaes, que o digno homem está a refundir em Amarante, para lhe arrancar tudo que não seja dos árias ou dos semitas, da raça portuguesa... Que lhe parece o pândego?...
Aquela Oração à Luz é, de resto, uma generosidade do ária. É claro que Pascoaes, desde os tempos do franquismo, que tãoa rdentemente amou, não simpatiza com o grande Poeta; mas, desde que Pascoaes apareceu republicano... histórico, quis ser mãos largas com o autor da Pátria: aplaude-lhe a Oração à Luz: corre a salvá-la!
Mas porque é que os Simples se não podem integrar nos árias? Não, não! Pascoaes não permite. Mas porque é que João de Deus é sempre maltratado, o divino poeta, nas baboseiras vergonhosas que bolsa o sr. Pascoaes? Mas porque é que os poetas novos do talento de Manuel da Silva Gaio, de Eugénio de Castro, de João de Barros, de Augusto Gil, de Guedes Teixeira, não falando em mim, é claro, que sou réprobo, em muitos outros anteriores, e em vários rapazes que se têm revelado brilhantemente, não podem ser descendentes dos Árias e dos Semitas? É que o sr. Pascoaes não gostam que lhe chamem mistificador; não lhe convém que, assim como gritaram ao velho rei no conto de Andersen, « que ele ia nú», que digam também, entre um coro de aplausos ingénuos ou inconscientes, que o sr. Pascoaes é um subalterno a armar ao efeito – ou um caso de manicómio. Não quer que lhe rebentem a bexiga de porco.
Terminando: a Renascença não existe; existe a Águia. É claro que serão sempre belas as coisas belas que lá forem escritas – que servem para amparar no seu trono de papelão, por pouco tempo, o pateta de revista de ano que a dirige.
E sabem quem são, entre outros, os criadores da Renascença? Os srs. Carlos de Oliveira, Augusto Santa Rita, Afonso Mota Guedes.
João de Deus e Garrett nada representam na raça. Representam aqueles!
Bom, já escrevemos demais – e convém esperar um pouco, visto que o homem está a rever a sua Obra – a maior da Europa.
Porque aquilo de chamar a Junqueiro e a Gomes Leal poetas europeus, leva água no bico... Seria até um caso de psicologia que eu desfiaria gora, e que seria divertidíssimo.
Mas já tenho abusado, não é verdade?









Júlio Brandão - "Polémica Literária". In O Mundo. Lisboa, Ano 13, n.º 4356 (23 Out. 1912), p. 3.
















sexta-feira, 17 de junho de 2011

para uma eticidade social




"... tento desenvolver os princípios de uma teoria normativa e substancial da sociedade a partir da hipótese de trabalho hegeliana de uma «luta pelo reconhecimento». A intenção de um tal empreendimento deriva dos resultados a que conduzira a minah investigação sobre a «Crítica do Poder»: quem tentar integrar os avanços, ao nível da teoria da sociedade, dos escritos históricos de Michel Foucault num contexto da teoria da comunicação não poderá prescindir de um conceito da luta moralmente motivada.... A reconstrução sistemática da figura de argumentação hegeliana, que constitui a primeira parte do livro, conduz a uma distinção de três formas de reconhecimento, que contêm em si, por sua vez, o potencial de uma motivação de conflitos."


"A segunda parte principal, sistemática, do trabalho toma como ponto de partida, por isso, a intenção de dar à ideia hegeliana uma viragem empírica pelo recurso à psicologia social de G. H. Mead: deste modo, gera-se um conceito intersubjectivo da pessoa, no seio do qual se comprova a possibilidade de uma auto-relação não perturbada como estando dependente de três formas de reconhecimento (amor, direito, valorização). Para retirar à hipótese assim esboçada o seu carácter de mera teoria histórica, procuro justificar nos dois capítulos seguintes, com base nos fenómenos objectivos e sob a forma de uma reconstrução empiricamente sustentada, a distinção das diversas relações de reconhecimento: às três formas de reconhecimento correspondem, como o comprova uma revisão deste tipo, três tipos de desrespeito, cuja experiência poderá influir sempre como motivo de acção na génese de conflitos sociais."


"Como consequência deste segundo estádio de investigação delineia-se assima ideia de uma teoria crítica da sociedade, na qual se deverá explicar os processos da transformação social referentes às pretensões normativas estruturalmente ínsitas à relação de reconhecimento recíproco. Na última parte do livro, sigo as perspectivas que são abertas por este pensamento fundamental em três direcções observáveis: primeiramente é retomado o fio histórico-teórico para verificar em que autores, depois de Hegel, se encontram abordagens para um modelo de conflito comparável; a partir daí será possível retirar ilações sobre o significado histórico de experiências de desrespeito, que s epodem generalizar a tal ponto que a lógica moral dos conflitos sociais pode vir à luz do dia; porque só se pode alargar um tal modelo tornando-o um quadro de interpretação crítico para processos de desenvolvimento históricos, quando o seu ponto de referência normativo estiver clarificado, será esboçada por fim, num último passo, no plano da teoria do reconhecimento, uma concepção de eticidade..."


Axel Honneth



RECUPERAÇÃO HISTÓRICA

Luta pela auto-conservação: sobre a fundamentação da filosofia social moderna

Crime e eticidade: a nova abordagem de Hegel a partir da teoria da intersubjectividade

Luta pelo reconhecimento: sobre a teoria social da Realphilosophie de Hegel em Jena


ACTUALIZAÇÃO SISTEMÁTICA

A ESTRUTURA DAS RELAÇÕES SOCIAIS DE RECONHECIMENTO


Reconhecimento e socialização: Mead e a transformação naturalista da ideia hegeliana

Modelos de reconhecimento intersubjectivo: Amor, Direito, Solidariedade

Identidade pessoal e desrespeito: violação, privação de direitos, degradação


A PERSPECTIVA DA FILOSOFIA SOCIAL

MORAL E DESENVOLVIMENTO SOCIAL

Traços de uma tradição da filosofia social: Marx, Sorel, Sartre

Desrespeito e resistência: sobre a lógica moral dos conflitos sociais

Condições intersubjectivas da integridade pessoal: um conceito formal de eticidade


O FUNDAMENTO DO RECONHECIMENTO. UMA RÉPLICA A QUESTÕES CRÍTICAS

terça-feira, 14 de junho de 2011

camilo e a literatura



Anátema. Pref., sel. e notas de Alexandre Cabral. Lisboa: Círculo de Leitores, 1981



“Não queremos enviesar apontoados de palavras eufónicas ao avelhado véu de mistérios com que por aí se enroupa o romance chamado da época. Filho legítimo da literatura palpitante de actualidade chamam-lhe uns: outros dizem que não é nada, ou por muito favor – uma ginástica de contorções dificultosas de estilo, opulenta de pontinhos, e ahs! E ohs!
Não subscrevemos a alguma das opiniões.
A primeira é um revoltante empirismo da ciência, pavoneando-se como o arlequim cintilante de lantejoulas. Tem de seu uma prodigiosa colecção de palavras elásticas até o infinito das reticências. O que escreve, magnetiza a inteligência do que lê, e manda-o adivinhar. Os temperamentos de nervoso afinadíssimo, à custa de grandes cargas de electricidade, vergam ao sonambulismo, e dormem com meia página do Judeu Errante no meio. A literatura, que palpita, está para a literatura que não palpita como menino de colégio, todo vibrante de viveza, que vem no sábado a casa perguntar ao bom pai:
- Mon père! Comment se port-t-il, bien?
O pai que é português, como uma página de frei bernardo de Brito, responde:
- Estou bem, louvado seja Deus.
Depois, o traquinas esperto e inquieto, cansado das carícias do pai, diz-lhe assim com uma indolência apaixonada:
- Je suis fâché... Je m`en vais jouer la cavatine en Torquate Tasse.
O pai aventura uma pergunta:
- Quem foi esse Torquato Tasso?
- Torquato Tasso... foi um poeta de aspirações etéreas, rico de estilo luxuriante, vivido de paixões ardidas e incisivas, estro inspirado do grandioso da arte, fadado para os séculos como o pregão de uma luta que se há travado no primitivo das crenças...
- Muito bem – interrompeu o pai. – Donde era Tasso, em que anos floresceu, e qual dos cantos do seu poema é o mais importante?
O palpitante menino (que já tinha escrito prosa em bíblico, e versos a uma mariposa) pede uma resposta à reminiscência, e esta dá-lhe o que pode: um trecho de uma revista semanal, em que o escritor analisando a ópera Torquato Tasso, escrevera assim: Da harmonia ressalta o pensamento: o pensamento, vibrado pelo impulso místico da arte, é como a harpa íntima de Tasso a modular tristezas. A dor e o rondó! A cavatina e o pranto! A demência e o alegro! A alma que se rasga, e a harmonia que se quebra, rápida e improvisa como o expirar do fulminado!...”
Estas palavras bem as decorara o colegial; mas isto, que muito vale não era resposta para um velho biógrafo, cronológico, e, diga-se o que é, sem palpitações de
actualidade!” (Introdução, 45-46)


“Se o estilo é o homem, como dizem os que sabem, não nos desaprovem este recurso de emparelhar o saber dos velhos com o dos novos.
Segunda opinião:
Dizem que o escrever de hoje é dessorado de erudição, leviano, vaporoso, ginástico, estridente, cabalístico, bafagem de brisa, balão aerostático, fogo chinês, vicejante, ondulante, estrepitoso e abismador!
Não é tudo assim.
Popularizada a literatura, era necessário despojá-la das alfaias graves e sinceras da ciência, trazê-la da profundeza da erudição à superfície das inteligências vulgares, e vesti-la do maravilhoso surpreendedor, já que o lógico verosímil é repelido da biblioteca da burguesa e do artista. Para captar a benevolência da leitora, precisava-se da história de uns amores trágicos, urgentes, e lamentosos. Para a do artista, cumpria ampliar-lhe a órbita do espírito apoucado, e humanitária da arte. O estilo devia ser exagerado como o pensamento: quimérico, híbrido, e mentiroso como todas as teorias, criadas no caos de todas as práticas.
Trabalho exclusivamente do coração, artimanha política, método civilizador, era aquele o único adaptado para cabeças sem cultura, sem sistema, prenhes de utopias e fumos de socialismo, como ele se escreve em jornais e romances. Criou-se, pois, uma escola militante. E o povo aplaude esses estereótipos baratos consagrados ao povo, entenda ou não entenda o que lê, possa ou não possa digerir o que entende.” (Introdução, 46-47)

segunda-feira, 13 de junho de 2011

camilo, a literatura e a dimensão moral






Camilo Castelo Branco - Cenas da Foz. Lisboa: Círculo de Leitores, 1989.





“O romance tem cousa má!
É a primeira vez que os tipos perpetuam o invento escandaloso de um título sem texto! Um crítico francês anunciou um romance, que, em lugar de principiar pelo princípio, começava no segundo volume. O autor, respeitador do público, explicava o contra-senso, dizendo que os romances eram escritos de modo que tanto fazia ao caso começar do primeiro volume para diante, como do último para trás.
Isto é razoável e persuasivo. Porém, incoerências deste tamanho não se desculpam num romance pensado, filosófico, haurido das fontes do coração, da experiência, e feito expressamente para entrar em quinhão de glória com as Reflexões de Fócion, com o Manual de Epicteto, com os Enxertos Gnómicos de Séneca, com os Caracteres de la Bruyére, excelentes repositórios de filosofia prática, que eu hei-de ler na primeira ocasião, porque me dizem que são livros de muito interesse, que ensinam a procurar a felicidade, como agulha em palheiro, na pobreza, na humildade, e na virtude. Mestres desta ordem têm sempre uma vida eivada de amarguras: isso é o que eu posso desde já afirmar, sem os ter lido. Fôcion sofreu morte dolorosa. Séneca, preceptor de Nero, bem sabem que desastrado remate teve de vida. Epicteto é aquele escravo do Tesouro de Meninos, que exclama, erguendo a canela partida por uma paulada: «Não vos disse eu que ma havíeis de quebrar?» Donde infiro que os preceptores da felicidade andam sempre de candeias às avessas com o género humano, e muitas vezes com a arte de engranzar capítulos de romance, de modo que a história vá bem contada até ao fim, que deve ser onde casa o herói, ou a heroína morre de tubérculos, no uso de óleo de fígados de bacalhau.
João Júnior, sumamente penhorado pelas atenciosas maneiras com que os seus numerosos amigos tem recebido esta sua primogénita criatura, tem a honra de declarar ao público, e mais senhores, que o capítulo XIV foi eliminado deste quadro de costumes, porque havia nele frescura de ideias, fantasia de cores, debuxos copiados da natureza viva, cousas, enfim, tão verdadeiras, tão patriarcais, tão nuas, que o seu editor, depois de montar os óculos, e sorver duas pitadas conspícuas, disse que não patrocinava com o seu nome um capítulo em que o mencionado supra contava os factos como eles tiveram a impudência de acontecer.
Em virtude do que entrei na minha consciência de artista, e vim a um acordo com a moral, aspando as doze páginas em que eu fortalecia os hábitos da natureza bruta com as doutrinas lúcidas dos intérpretes mais abalizados dos mistérios do coração; doze páginas salpicadas de uma erudição exemplificativa, que remontava à criação do globo, para provar que o homem e a mulher, sem o intermédio do merinaque, são dois entes homogéneos, duas substâncias amalgâmicas, dois tomos da mesma obra, duas criaturas, enfim, dos nossos pecados. Nesse capítulo, naufragado no cachopo da moral, tinha eu uma gorda nota comprovativa da minha opinião ideológica a respeito de mulheres, rica de história antiga, em que, sabe Deus com que vigílias, entravam Salomão e Dalila, Péricles e Aspásia, Tibulo e Lésbia, Ovídio e Corina, tudo pessoas que amaram como se ama de uma até quarenta vezes na vida, com todo o ideal arroubado dos anélitos da adolescência, com a fé pura, cândida e imaterial do amor de Voltaire a Madame du Châtelet, do amor de La Rochefoucauld a Madame de La Fayette, do amor da minha vizinha do terceiro andar, que, às duas horas da noite, desce, com uma caixa de lumes prontos, a desandar a chave, que teima em chiar, apesar do azeite prévio, quando um Romeu de capote de mangas lhe assobia a cavatina do Trovador. Tudo isto, e muitas cousas mais, vinham na nota, que prometo embetesgar na primeira cousa que escrever, ainda que seja um artigo sobre o pulgão da batata.
Fortíssimas razões tinha eu para teimar em publicar o meu querido capítulo XIV, visto que era ele o relatório das miudezas que se deram antes e depois do fatal acontecimento da noite de 25 de Agosto de 1826, acontecimento grave e complicado, cujo conhecimento seria a chave do meu romance, se o editor ultra-honesto não teimasse em afirmar que o meu romance não precisa de chave para abrir as portas da eternidade. Pedi-lhe que me deixasse, ao menos, contar o facto em estilo levantado, alegórico, metafórico, ao alcance, apenas, das inteligências superiores. Nem isso. Estava escrito em estilo oriental, balsâmico, todo perfumarias de subtil aroma da alma, e ele teima em dizer que a alma não tem nariz.” (79-81)

terça-feira, 7 de junho de 2011

a espanha de blasco ibañez

sessão da homenagem a blasco ibañez na sociedade de geografia, promovida pelo centro democrático académico em 16 de maio de 1909. fotografia retirada do blog do dr. manuel sá marques, do dia 12 de janeiro de 2010




para yoli, republicana convicta, este texto belíssimo de bernardino machado sobre a espanha cultural, texto lido no almoço que foi oferecido ao republicano espanhol em Lisboa, no dia 18 de Maio de 1909. a república portuguesa avizinhava-se.






Saúda em Blasco Ibañez a Espanha, a Espanha culta, que, não há muito ainda, quase ao mesmo tempo era glorificada na sua arte, na sua indústria e na sua ciência – Estocolmo conferia o Prémio Nobel ao dramaturgo Echegaray, Londres solenizava o aniversário do invento do laringoscópio por Manuel Garcia e a Academia de Berlim fazia seu sócio o sábio Tamon y Cajal – Nação admirável, que tem para celebrar as suas glórias passadas uma personalidade tão eminente como Menendez Pelayo, que vale por uma Academia inteira, e tem para lhe rasgar o horizonte das glórias futuras a personalidade extraordinária de Joaquim Costa, que é só por si como se fosse uma faculdade inteira de direito moderno.
Saúda a Espanha liberal, onde há hoje um grande Partido Republicano, com brilhante representação no Parlamento e nos municípios, cuja força profunda e incontestável se acaba de demonstrar rijamente nas últimas eleições, e onde o Chefe do Estado envia os seus cartões de cumprimentos aos presidentes do Senado e do Congresso, onde o Senado é já em parte electivo e o Congresso eleito pelo sufrágio universal, e onde o conservador Maura combate dentro do próprio partido a política do poder pessoal, do engrandecimento do poder real, e propõe e faz vingar uma lei de governo local, largamente descentralizadora.
Saúda a Espanha trabalhadora, onde se vai operando uma poderosa organização associativa de classe, e onde o Ministério das Finanças Villaverde fez mais do que equilibrar as despesas com as receitas, porque levou o orçamento e as contas do Estado até ao superavit, onde os governos têm sucessivamente reduzido os impostos de consumo e onde os partidos no poder se empenham em promulgar leis de justiça e protecção ao operariado.
Saúda a progressiva Nação espanhola, em que não só figuras tão extremadas na vida pública, como eram entre si ainda há pouco Galdés e Pereda, se abraçam no trato particular, mas em que Maura procura Azcárate e Labra para os ouvir sobre as questões nacionais pendentes mais graves, em que o Ministro Marquês de Figueiroa, conservador e católico, se incorpora, em nome do Governo, no saimento do republicano e livre pensador Salmeron, em que os poderes públicos não duvidam nomear para o Instituto de Estudos Sociais os professores republicanos Builla e Posada e eles não duvidam aceitar a nomeação, em que Madrid, por acordo e com aplauso geral, remove duma das suas mais belas praças o obelisco comemorativo dum nascimento principesco para o substituir pelo monumento ao príncipe da eloquência tribunícia, Castelar. E ainda tem nos ouvidos os vivas à República que, perante esse majestoso monumento, o povo, levando entre si Moret, ergueu, em meio da impassibilidade da polícia, no último aniversário da Revolução de Setembro.
Para essa obra de sociabilidade e de colaboração mútua tem contribuído imenso, cimentando a união íntima da juventude espanhola, a Instituição Livre de Ensino de Madrid, à frente da qual está um dos primeiros educadores do nosso tempo, D. Francisco Giner. Por isso, dirige-lhe também dali as suas saudações.
Neste movimento de solidariedade nacional, nesta penetração de ideias e sentimentos humanistas de tolerância, vê-se bem o espírito novo que avança serenamente e dominadoramente. À custa de quantas lutas, a preço de quantas dores e angústias, de quantos sacrifícios da democracia? Ai! Imagina-o.
E há uma província de Espanha, onde esse espírito novo tem a pujança, a exuberância do solo natal; é Valência.
De Valência é Soriano, é o republicano Luís Sinarro, insigne histologista e psicólogo, é o brilhante escultor republicano Benlliure, é o republicano Sorolla, o afamado pintor, é o republicano Morote, o enorme jornalista mundial, cheio de talento e de atracção, nosso inolvidável amigo muito querido, a quem tanto e tanto devemos das simpatias da opinião pública da Espanha para connosco, quando, em luta pela liberdade contra o despotismo, tivemos cruelmente contra nós a imprensa de todas as outras nações, até da liberal Inglaterra, até da republicana França, e é o republicano Blasco Ibañez, o prodigioso homem de letras que temos a honra de hospedar neste momento.
Saúda efusivamente a Blasco Ibañez, e, para o fazer, traz-lhe mais do que a sua pobre palavra, traz-lhe um abraço carinhoso de Guerra Junqueiro.

Bernardino Machado - "Blasco Ibañez". In Pela República: 1908-1909 - II. Lisboa: Editor-Proprietario, Bernardino Machado, 1910, pp. 547-551; "Em honra de Blasco Ibañez. Homenagem dos republicanos portugueses. O almoço de hontem no Grande Hotel de Inglaterra. O sr. dr. Bernardino Machado saúda a Hespanha politica e abraça Blasco Ibañez em nome de Guerra Junqueiro". In O Mundo, Lisboa, Ano 9, n.º 3067 (19 Maio 1909), p. 1.