domingo, 24 de maio de 2009

23 maio 09

Para o Dr. Sá Marques



Hoje, melhor, ontem, já que passa mais da meia-noite, em vez de ter ido a Seide para a 2.ª sessão da Comunidade de Leitores de Camilo, tendo sido o livro escolhido Vinte Horas de Liteira, resolvi ir até ao Museu Bernardino Machado, não só para escutar a conferência do Prof. Norberto Cunha, como também para dar um abraço ao Dr. Manuel Sá Marques. Posso dizer que, usando um título camiliano, que estive em Seide com o coração, a cabeça e o estômago: com o coração porque gosto de Camilo, com a cabeça porque já aí virá algumas reflexões pessoais sobre Vinte Horas de Liteira, e, finalmente, com o estômago, porque, tal como na primeira sessão, não deveria ter faltado uns docinhos e um vinho do porto para se apreciar a obra seleccionada. Camilo gostaria destas sessões.

Mas a surpresa seria inquestionavelmente a oferta que o Dr. Sá Marques me proporcionaria, com alguns livros, obviamente, com a sua boa vontade infinita. Kant gostaria deste neto de Bernardino Machado. Desta boa vontade do Dr. Sá Marques, tão pouco comum nos nossos dias, tenho até uma experiência recente que me deslumbrou. Efectivamente, anadava ainda a investigar a colaboração de Armando Bacelar na imprensa neo-realista, quando necessitava do jornal bracarense Alma Nova, por ele dirigido enquanto estudante liceal em Braga. Na altura, sabendo que os quatro números existiam na Biblioteca Nacional, pensei então em pedir ao Dr. Sá Marques que me arranjasse o título respectivo, o que o obrigaria a deslocar-se à respectiva Biblioteca Nacional. Após alguns dilemas morais, entre o pedir e o não pedir, lá resolvi um dia telefonar-lhe; e a resposta foi imediata, para não me preocupar que trataria de tudo, e disponha, disponha! O espanto foi tanto, fiquei tão estupefacto com tamanha amabilidade, que tal gesto é daqueles gestos que não se esquecem, ficam connosco até à imortalidade dos tempos, na nossa interioridade, enviando-me, praticamente, logo de seguida, os números respectivos fotocopiados por correio.
Desta vez, com a sua vinda a Famalicão, entre ir a Seide ou ao Museu, a opção de lhe ir dar um abraço e conversar um pouco com ele foi a que prevaleceu e acabou por ser relevante, não só pela sua companhia, como igualmente pelas ofertas com que me presenciou. Alguns livros eram conhecidos e não lidos, outros tidos e já lidos e outros ainda completamente desconhecidos. Destes últimos, saliento dois de José Barata Moura intitulados

respectivamente, Totalidade e Contradição: acerca da dialéctica e Para Uma Crítica da «Filosofia dos Valores», assim como o de Egídio Namorado intitulado Ponto de Vista, com prefácio de Fernando Catroga e que se chama Egídio Namorado: um racionalista dialéctico. Dos já conhecidos e não tidos (já estive com o livro na mão para o comprá-lo) destaco o livro O Século dos Intelectuais de Michel Winock e dos já tidos e lidos As Paixões e os Interesses de Albert Hirschman e o de Stuart Mill com o título Da Liberdade de Pensamento e de Expressão.


Ora, o ensaio de Hirschman é um daqueles textos que se podem aplicar perfeitamente à estética camiliana no plano teórico para justificar o que Camilo nos diz a propósito da “loucura do género humano”, a qual, na leitura das Vinte Horas de Liteira, a citação é de lá, se reparte entre o amor e a “moeda”. Aliás, Camilo aventa a hipótese de se inventar o numímetro, para se descodificar o comportamento humano.

Não sei, como é óbvio, as razões que levaram a Cândido Martins, o moderador destas sessões, a escolher este livro de Camilo para a 2.ª sessão da Comunidade de Leitores de Camilo. Contudo, para mim, inquestionavelmente, Vinte Horas de Liteira representa a condição programática da estética criacional de Camilo, a qual vem desde o seu primeiro romance, Anátema. Será através do seu alter-ego António Joaquim (cuja personagem aparece em romances como o Sangue e Doze Casamentos Felizes) que o autor-narrador Camilo expõe a condição de se ser escritor, evoca o papel dos editores perante o escritor, como é que o tema surge na escolha do escritor, as relações do autor com o editor e com o leitor, reflexões à volta do papel da literatura perante a


problemática do fingimento, a literatura na sua dimensão moral, ou o papel da imaginação e da memória no acto criacional, no nosso caso em Camilo. Perante estes grandes temas, surge-nos a fenomenologia do amor nos vários tipos humanos que Camilo oferece na multiplicidade de histórias (hoje, a literatura portuguesa é sem história) que nos vai auto-narrando pela figura de António Joaquim, analisa aquilo que poderá ser a poesia, o papel dos folhetinistas (os quais, depois, dão em políticos), as


paixões, os costumes, ou a relação intertextual com as personagens. Finalmente, gostaria de salientar a referência que Camilo nas Vinte Horas de Liteira efectua ao Minho e, particularmente, a Vermoim, freguesia do concelho de Vila Nova de Famalicão, não só no que diz respeito ao seu castelo ficcional, aparecendo muitas vezes nos seus textos, como a rara apologia de encantamento da vizinhança de Seide. Cito:

Vermoim é um altíssimo acerco de fragas, sobranceiras à freguesia daquele nom, uma légua distante de Famalicão, à esquerda da estrada de Guimarães. Da crista do monte descobrem-se verdadeiros tesouros, fertilíssimas campinas, povoações a branquejarem por entre florestas, bosques coroados pelas agulhas das torres, rios que serpenteiam por entre almargens e ervaçais, enfim, o Minho, o espectáculo prodigioso, que faz amar Portugal, e pedir a Deus nos não deixe ir tão longe no caminho do progresso material, que, ao cabo de contas – ao cabo de contas é a frase própria –, fiquemos sem pátria, por amor do aperfeiçoamento da matéria.


Evoco aqui, para uma análise futura mais profunda, sobre o que poderá ser a felicidade, através da personagem de Manuel de Mó, brasileiro de torna-viagem, tema, aliás, tão rico em Camilo:


Disse-me ele que cumprira o voto que fizera antes de ir para o Brasil, porque viera de lá com tamanha riqueza que não invejava a riqueza de ninguém, e por isso se considerava o homem mais rico da terra. Quis ele dizer que a experiência do mundo, e particularmente a experiência da vida amargurada de quem vai enriquecer-se ao Brasil, é um tesouro que Deus concede àqueles a quem quer dar o desapego dos bens necessários à verdadeira felicidade.